Traducción al portugués: Esquerda Web
“(…) meu propósito é a construção de linhas e cores combinadas em uma superfície plana para visualizar a beleza per se da maneira mais consciente possível”
(Pieter Cornelis Mondrian, citado por Nicholas Fox Weber, 2024: 136)
Nas fichas de estudo que apresentaremos a seguir, percorreremos alguns dos autores marxistas clássicos no tratamento da entidade e do futuro do trabalho humano. Vamos nos deter tanto em Pierre Naville e sua grande obra, Le Nouveau Léviathan, como em Georg Lukács e sua Ontologia do ser social, e, posteriormente, veremos vários fragmentos das obras de Marx referentes à problemática do trabalho humano e do maquinismo (em “Do trabalho humano ao «general intellect»”, na Esquerda Web, deixamos registrada uma citação clássica dos Grundrisse que ainda temos pela frente para analisar).
1 – A modo de introdução
A redação do tomo II da nossa obra nos levou – por sua própria lógica – a abordar temas que não tínhamos pensado no plano original. O que desenvolvemos a seguir é um deles, e remete à dialética entre o conceito de “trabalho humano” e o de “atividade humana”, ou seja, com qual conceito abordar, no comunismo, a eterna atividade metabólica humano–natural.
A nosso ver, até onde chegou nossa investigação até hoje, trata-se de uma discussão que, em termos gerais, opera entre dois limites.
- A) Por um lado, não deve nos escapar a aguda definição engelsiano-marxista de que “o trabalho humano criou o ser humano”. Ou seja, a interação com a natureza, a re-atuação sobre ela, transformando-a, transformou ao mesmo tempo os próprios seres humanos (mais precisamente, transformou-os em humanos). O trabalho, nesse sentido, foi o que fez dos humanos aquilo que somos: aquela espécie do reino animal que é capaz de transformar conscientemente seu entorno natural; criar, a partir dos elementos que a natureza nos oferece, uma “segunda natureza” nos termos de Antonio Labriola: uma “natureza artificial” (sendo as cidades aquela imensa criação humana em que a humanidade se dá não só um hábitat, mas também uma ágora – Castoriadis).[1]
Em sua Ontologia do ser social, precisamente no capítulo sobre o trabalho, Lukács nos oferece essa mesma definição: “É universalmente sabido que o domínio do ser humano sobre seus instintos, afetos etc. é o problema principal de toda educação moral, desde o hábito e a tradição até as formas mais elevadas da ética” (2016: 102).[2] E acrescenta imediatamente: “O homem tem sido frequentemente caracterizado como um ser que fabrica ferramentas. Isso é, igualmente, correto, mas é preciso acrescentar que a fabricação e o uso de ferramentas supõem forçosamente, como condição ineludível do trabalho bem-sucedido, o autodomínio do homem (…) Também este é um fator (…) da elevação do homem acima da existência meramente animal (…) o homem realiza o domínio sobre si mesmo, como condição necessária para a realização dos fins que se impôs no trabalho. Também sob esta perspectiva pode-se dizer que o trabalho é o veículo para a auto-criação do homem enquanto homem. Este, enquanto ser biológico, é um produto da evolução natural. Com sua autorrealização, que, naturalmente, também nele mesmo pode significar um recuo dos limites naturais, mas nunca seu desaparecimento, a plena superação desses limites, o homem ingressa num ser novo e por ele mesmo fundado: o ser social” (2016: 102).[3]
O veículo dessa auto-criação humana pelo trabalho foram antigamente, por assim dizer, as ferramentas e, posteriormente, o maquinismo, o autômato, a ciência e a tecnologia, o “intelecto geral” (general intellect) estudado por Marx tanto nos Grundrisse como nos fragmentos sobre maquinismo nas várias redações de O capital (fragmento de 1861-1863).
Essa outra imensa criação humana coloca entre os seres humanos, entre o ser social e a natureza, os meios de produção em sentido amplo como fator mediador; são eles que transformam a natureza, transformam o próprio ser humano e, eventualmente, tendem a transformar o próprio conceito de trabalho humano ao dotar a humanidade de uma base material superior (sem nunca esquecer que, a cada momento, as forças produtivas podem se tornar destrutivas).[4]
- B) O segundo limite dessa discussão é saber se o trabalho é, realmente, “protoforma” de toda atividade humana (Lukács), isto é, a forma básica da própria atividade humana, ou se, sendo-o de certa forma (ou até certo ponto), não se está, com esse conceito, ontologizando uma determinada maneira histórica de sujeição humana à natureza. Sujeição que, de todo modo, permanecerá eternamente. Mas a questão é se uma forma de transcender, no comunismo, as determinações do trabalho por estrita necessidade não implicará ser mais adequado o conceito mais genérico de atividade, para dar conta do trabalho emancipado de toda dominação de umas pessoas por outras. Ou seja: o trabalho emancipado socialmente (o que, repetimos, não é o mesmo que a total emancipação humana em relação à natureza, à biologia, às determinações físico-materiais).
A relação humana–natural é, evidentemente, trans histórica, embora, como se vê na citação de Lukács colocada acima e na recopilação de textos de Trótski em Literatura e revolução, possa deslocar-se até limites que hoje consideraríamos “utópicos”, mas que talvez amanhã não o sejam.[5]
Ocorre que até mesmo aquilo que se estabeleceu como “natureza humana” não é exatamente tal: os seres humanos, o homo sapiens, contêm em sua própria natureza potencialidades evolutivas que, embora não tenham se manifestado nos últimos 200.000 ou 300.000 anos, desde o advento da nossa espécie, não se pode negar que essas potencialidades evolutivas – e involutivas? – estejam abertas.[6]
A discussão que nos interessa em relação à dialética entre o trabalho humano e o conceito mais genérico de “atividade” fazemos a partir de um determinado ângulo que é, prima facie, a crítica ao stalinismo (e à social-democracia), à experiência social nas sociedades pós-capitalistas burocratizadas do século passado, onde o trabalho foi ontologizado por razões evidentes (razões de exploração dos trabalhadores!).[7]
Aqui se abrem, novamente, dois limites dentro dos quais se move essa discussão a respeito das relações entre o trabalho e a atividade humana (nas palavras de Naville, entre o trabalho e o não-trabalho): a) o limite de esconder as condições nas quais o trabalho não está realmente emancipado. Isto ocorre porque subsistem relações de autoexploração do trabalho, relações que são, em si mesmas, uma superação da exploração unilateral do trabalho alheio, mas onde ainda persistem as relações entre trabalho necessário e trabalho excedente, exigindo decidir, democrática e coletivamente, como realizar sua repartição. Trata-se, então, de uma situação onde cabe a possibilidade de reinício de relações de exploração unilateral. (É preciso situar o olhar na questão de até que ponto podem ser mascaradas as relações de trabalho explorado que subsistem na transição socialista autêntica ou, ainda mais, na degeneração da revolução.)
- b) Por outro lado, a problemática do metabolismo eterno entre seres humanos e natureza. Esse metabolismo é eterno, embora esteja mediado, como no exemplo dos Grundrisse, por um mecanismo, por um autômato hiper-desenvolvido (como até certo ponto começa a ocorrer hoje com a IA).[8]
“(…) uma vez inserido no processo de produção do capital, o meio de trabalho experimenta diversas metamorfoses, sendo a última delas a máquina ou, mais precisamente, um sistema automático de maquinaria (sistema da maquinaria; o automático nada mais é do que sua forma mais plena e adequada, e transforma pela primeira vez a maquinaria em um sistema), posto em movimento por um autômato, por uma força motriz que se move a si mesma; esse autômato se compõe de muitos órgãos mecânicos e intelectuais, de tal modo que os próprios operários são determinados apenas como membros conscientes de tal sistema” (Grundrisse, 1980: 218).[9]
Esse metabolismo faz com que seja insuperável a categoria de forças produtivas como metabolismo eterno entre o humano e a natureza. Mas a pergunta aqui é se a essa inter-relação poderemos continuar atribuindo a conotação fundante de trabalho ou se, em razão da herança de desigualdade social presente nesse conceito, não será melhor —pensando no eventual futuro comunista da humanidade— recorrer à mais genérica “atividade”, onde a relação entre seres humanos, sociedade e natureza aparece profundamente revolucionada em formas que hoje não podemos antecipar — “utopia” e distopia caminham juntas nesse debate.
Obviamente, com esse enfoque não nos interessa recuperar análises pós-modernas sobre o “adeus ao proletariado” e coisas do tipo (o assassinato do veículo histórico da transformação social), análises onde a “des-ontologização” do trabalho por necessidade aparece como artifício para retirar de cena a centralidade das trabalhadoras e trabalhadores na transformação socialista (o que constitui uma fuga para a abstração social, como ocorreu nos últimos textos do francês André Gorz, sociólogo do trabalho).[10]
Toni Negri também não vai na direção que nos interessa, porque vê no processo de des-ontologização uma espécie de “difusão do trabalho” por toda a sociedade em termos extremamente genéricos, uma espécie de “realização do comunismo em curso”, o que redunda na perda da centralidade das e dos trabalhadores em benefício do conceito de “multidão”, uma fuga pós-moderna das determinações reais (o impressionismo campeia em todas as análises nuevistas).
Por outra parte, há a posição de Fourier, que reduz o trabalho a mero divertimento. E isso não é assim. Porque, considerando o trabalho ou a atividade como qualquer aplicação humana ao desenvolvimento da ciência, das artes ou da produção, ele não pode ser assimilado a simples diversão. Obviamente, no trabalho teórico, artístico, intelectual, e também no trabalho artesanal, há autorrealização: qualquer trabalho criativo é autorrealização. Mas, como no exemplo de Marx, dirigir uma orquestra é uma atividade-trabalho infernalmente séria.
Tudo depende – ou depende em grande medida – do ângulo de visão. Existe o perigo de reduzir as relações de trabalho a relações meramente técnicas, isto é, sem conteúdo social, ou, ao contrário, ontologizar o trabalho.
A questão é a forma de “imaginar”, no limite, uma situação em que o reino da liberdade se alargue até fronteiras hoje insuspeitas, embora isto nunca possa significar que nos possamos emancipar da natureza. Não parece possível a simples passagem do reino da necessidade ao reino da liberdade, como por vezes é formulado nos nossos clássicos, Marx e Engels. Não na sua acepção metabólica com a natureza, embora sim na sua acepção social, intra-humana.[11]
A pergunta é: o reino – social – da liberdade é alcançável ou inalcançável? Ou seja: subsistem o reino da necessidade e o reino da liberdade em paralelo? – necessidade “resolvida” que deveria ser a base da liberdade. Num ponto metabólico-natural, o reino da necessidade subsiste porque não podemos emancipar-nos da natureza. No entanto, socialmente, como acabámos de ver, a sociedade acede ao reino da liberdade: é o fim das relações de desigualdade material (conceito mais normativo ou mais real conforme o desenvolvimento das forças produtivas que não revertam em destrutivas, algo que, evidentemente, não está assegurado).
Em todo o caso, na medida em que continuamos a depender da natureza, somos seres biológicos além de sociais, o que coloca outra pergunta: no que diz respeito às relações metabólicas entre humanos e natureza, ao trabalho, esta subsistência do reino da necessidade em condições de liberdade social continuará a chamar-se trabalho?
Por agora tentaremos responder a este interrogante com uma ficha de dois capítulos do tomo 1 da obra de Pierre Naville, e numa próxima nota dedicar-nos-emos às citações de Marx nos Grundrisse sobre o maquinismo (cumpre esclarecer que neste primeiro tomo da obra de Naville, datado de 1957, o autor não tinha lido os Grundrisse – não aparecem entre as obras de Marx que menciona nos capítulos onde trata a problemática do trabalho).
2 – O trabalho como relação social
No que segue, dedicar-nos-emos então a realizar uma “simples” transcrição dos conceitos de trabalho e atividade na obra de Pierre Naville. Trabalharemos parafraseando algumas partes dos dois capítulos mencionados, e citando textualmente quando nos pareceres que a riqueza da análise o exige.
Naville, sociólogo de profissão — algo de que não nos lembrávamos, ou de que não nos tínhamos apercebido — começa por uma reflexão sobre a sociologia (é sabido que não simpatizamos muito com a sociologia: consideramo-la marcada por muitos traços conservadores e funcionalistas).
Segundo Naville, Bukhárin, “um dos principais teóricos marxistas contemporâneos”, considerava o marxismo como uma sociologia. Bukhárin afirmava que é a sociologia que deve dar um método à história; que o lugar da teoria do materialismo histórico não está dentro da história, mas dentro da ciência geral da sociedade e das leis da sua evolução, isto é, na sociologia. O ponto de vista de Bukhárin foi confrontado por Lukács e Gramsci, e é também o nosso ponto de vista: “Gramsci considera que a ‘sociologia’ não pode ser outra coisa senão a filosofia de um evolucionismo positivista” (Naville, 1970: 357).[12]
No entanto, segundo Naville, “as concepções de Marx podem muitas vezes ser qualificadas como sociológicas” (Naville, 1970: 356). Afirma que isto deve ser assinalado mesmo antes de expor a síntese final de Marx e a sua concepção definitiva sobre o trabalho humano. Opor uma definição à outra não nos permitirá avançar, afirma. Em todo o caso, a sociologia é uma ciência daquilo que se chama sociedade, uma ciência da sociedade. Toda definição mais precisa deve tornar-se operatória.[13] A sociedade é um “facto total”. Porém, esse reconhecimento da existência do facto social como diferenciável [isto lembra-nos a clássica definição de Durkheim em O Suicídio, do “facto social como coisa”][14] não prejulga a explicação — não apenas dos seus momentos abstractos, mas também das suas formas concretas particulares e dos seus elementos constitutivos. O papel do momento económico e do momento moral, por exemplo, não pode realmente ser determinado senão na sua manifestação concreta (aqui Naville parece corrigir certo “sociologismo” mal compreendido).
Neste sentido, será necessário verificar o fundamento de uma sociologia coerente na sua capacidade operatória para a explicação de um fenómeno concreto.
Sendo este o caso
“o fenómeno concreto mais evidente de toda sociedade ‘em ato’ é o trabalho, a produção e reprodução da vida social, a manifestação organizada da existência coletiva contínua da espécie humana. Pouco importa que se considere a priori ‘o trabalho’, a atividade humana, como causa ou como efeito, fundamento ou fim, origem ou fator, etc.; é antes de tudo um fato, uma realidade, o ato social por excelência. Neste sentido, é melhor falar da sociedade como ato total do que como facto social” (1970, 358/9).
É evidente que aqui Naville se diferencia de Durkheim, conferindo força a uma conotação ativa da sociedade.
Naville observa que a existência do trabalho como “ato total” deriva certamente de ser uma atividade necessária, determinada, um momento decisivo das relações de produção-consumo, um devir de toda a vida humana. Nesse sentido, o trabalho existe como realidade sociológica, revela o facto social total, e pode mesmo dizer-se que é constitutivo do facto social total (1970: 359). E é-o porque é produção e reprodução, manifestação da vida humana; e aquilo que importa à sociologia é conhecer o mecanismo das suas manifestações, do seu exercício. “‘O trabalho’ é tanto produção como produto; por outras palavras, operação e uso. É Aristóteles quem introduziu esta distinção com o máximo rigor: ‘Chamamos instrumento àquilo que opera um efeito [a], e propriedade doméstica àquilo que é produzido [b] (…) Existe além disso uma diferença entre fazer e agir: e como ambos requerem instrumentos, deve haver entre esses instrumentos a mesma diferença. A vida consiste no uso [c], não na produção’” (Naville citando Aristóteles em Política, 1970: 359).
Mas como pode haver uso sem produção? Parece evidente que Aristóteles omite a palavra produção porque esta era levada a cabo por escravos, que, paradoxalmente, eram — são — instrumentos autónomos (autómatos), um pouco como o maquinismo viria a sê-lo após a revolução industrial, algo que veremos com Marx quando abordarmos os Grundrisse na parte do maquinismo.
Continuando com a afirmação de Naville de que o trabalho é tanto produção como produto, aponta que, portanto, é a base de uma previsão. A previsão é a revelação de uma relação de consecução, mensurável. Toda lei tem tal significado e remete, antes de tudo, ao trabalho enquanto operação.
Marx parte do facto de que a primeira produção dos humanos são eles próprios, onde indivíduos de sexos diferentes são “instrumentos diretos”. A produção e reprodução da espécie é então a condição de toda sociologia, e são, propriamente, o primeiro trabalho e a primeira divisão do trabalho.
“Existe uma imanência, um ‘inconsciente’, um algo desconhecido na vida social, que a sociologia se esforça por captar. Algo que participa no estudo dos ‘fatores’. Como esses fatores operam na sociedade ‘em ato’; não são passivos, não são peças separadas de um mecanismo morto, mas elementos vivos de uma síntese. Porém, está síntese é hierarquizada, não absolutamente, mas relativamente: supõe subordinações variáveis. Essas subordinações não são reducionismos ou simples substituições, mas expressão de forças, de ações recíprocas” (Naville, 1970: 361).
“Estas formas são infinitamente variáveis, mas podem ser ordenadas. E o princípio de ordem será a atividade produtiva, o trabalho” (1970: 362).
“Pode-se rejeitar a ‘primazia’ das forças produtivas na organização da vida social e na interação dos seus diferentes níveis. Se se está perante um ‘tecnicismo estreito’, a crítica será justificada. Mas se se consente reconhecer nas relações sociais um complexo onde todos os elementos, por mais reais que sejam, não desempenham o mesmo papel, será difícil rejeitar aos fenómenos do trabalho o estatuto de condição mais geral de toda a vida social humana” (1970: 362).
Naville critica em seguida Gurvitch, reconhecido sociólogo burguês de meados do século XX, que afirmava que Marx teria operado um reducionismo economicista da ampla visão que possuía nos seus escritos de juventude.
“Não cremos que o ‘processo’ [a acusação] que se pode fazer a Marx seja um processo sobre a ‘realidade’ [isto é, o de ter simplificado a riqueza do real]. Todos os níveis da realidade são dados nas formas sociais. O ponto decisivo é saber como eles operam numa situação dada. Isto só pode ser elucidado mediante um estudo concreto dessa situação. É deste ponto de vista que o estudo do trabalho se torna sociologicamente valioso” (1970: 362).
Naville assinala que, no entanto, a análise social de Marx não parece, à primeira vista, ser totalmente assimilável a uma sociologia, na medida em que nela se apreciam dois aspectos específicos:
a) o primeiro, propriamente económico; b) o segundo, a relação diretamente natural, isto é, não social (pressupomos que Naville aqui se refere à indispensável relação metabólica com a natureza, cujo nível primário é biológico).
Naville insiste em que é um erro reduzir a análise de Marx a uma “economia política”, esquecendo a palavra “crítica”.[15] Não é apenas uma crítica como oposição ou negação, mas como explicação e superação.
“Marx foi-se convencendo, pouco a pouco, através do estudo dos ‘economistas’, de que o trabalho, fenómeno fundamental, não pode ser concebido como fenómeno puramente económico ou técnico, mas como uma relação social, uma ação humana recíproca, um facto ‘sociológico’ [isto é, social]” (1970: 363).
Naville afirma que foram Hegel, por um lado, e Proudhon e Saint-Simon, por outro, que orientaram Marx nesse sentido, sem esquecermos a intuição direta obtida através da vida operária.[16] O equívoco das objecções feitas pelos economistas a Marx provém daí. Eles opõem uma economia, que é uma fenomenologia dos intercâmbios autonomizados, a uma sociologia, onde a economia não pode ser mais que um momento subordinado. É por isso que consideram toda concepção do trabalho que ultrapasse a economia propriamente dita como uma “filosofia” ou metafísica. (Este ponto parece-nos extremamente importante na análise de Naville: o trabalho é uma relação social, não um “facto ontológico” separado dessas relações.)
“Afirmamos que a sociologia e, nomeadamente, a sociologia do trabalho, prolongam-se numa certa coisa que as ultrapassa, sem que seja, todavia, uma filosofia ou uma ética tradicional (…) O social transforma-se em não-social, tanto como o trabalho se metamorfoseia em não-trabalho, em atividade pura, que de alienação dos seres humanos tende a passar a felicidade desinteressada. [O carácter tendencial-normativo da análise parece-nos aqui da maior importância!] Esta antítese — isto é, a do trabalho e do não-trabalho — é a mais profunda entre as que animam a dialética do trabalho” (1970: 364).[17]
Naville acrescenta que se podem discutir os postulados da economia. Afirma que, na busca da sua própria autonomia, ela cai no reducionismo de ser tomada como circunstância de facto, ou de se considerar como “ciência pura”, independentemente de toda a realidade social transitória, o que a esteriliza do ponto de vista crítico.
Mas acontece que os vínculos sociais estão destinados a mudar de natureza [isto é especialmente pertinente para o futuro do trabalho enquanto relação social]. Os primeiros socialistas, dogmáticos e utópicos, pensavam que esses vínculos renovados já não poderiam chamar-se sociais. Procuravam abolir os vínculos sociais tradicionais, transformando-os em relações naturais e técnicas caracterizadas pela harmonia (algo que também vimos em certas fantasias dos teóricos soviéticos dos anos 1920, uma espécie de abordagem utópica mal compreendida).[18]
De qualquer modo, esta superação do trabalho, impossível de instaurar de um só golpe, está determinada por uma longa evolução. Os sociólogos, e em particular os etnólogos, admitem, em nome dos seus pressupostos, a mortalidade das civilizações, isto é, a evolução histórica. A combinação dos seus encadeamentos pode ser objeto de especulações infinitas, mas tais encadeamentos podem ser estudados enquanto tais. A combinação de civilizações surge-nos como um “encadeamento social”.
Assim, é inevitável que toda análise sociológica que antecipa o futuro das sociedades, e que as considera mais como meio que como fim, acabe por se tornar, em definitivo, numa não-sociologia, numa concepção das relações humanas que já não tem nada de especificamente social [isto parece-nos algo extemporâneo, pois é impossível superar o estádio social das relações humanas, mas supomos que Naville fala aqui a partir da matriz engelsiana da “passagem da dominação das pessoas à administração das coisas”, ideia que, como sabemos, teve consequências bastante duvidosas nos imaginários da transição no século passado].[19]
Naville afirma que, seja como for, a passagem da análise social à “natural” — que nos parece remeter para a ideia dos fins no comunismo: fim da exploração, do Estado, do trabalho, etc., fins que ele aborda, cremos que de modo algo interessado, como “naturais”, sem usar exatamente essa palavra — é uma orientação persistente de todas as sociologias que refletem de forma consequente as suas exigências [refletir de forma consequente tais exigências é, precisamente, pensar as coisas histórico-teoricamente e não ontologicamente, num outro nível: o filosófico]. Mas isto será, em definitivo, interessante de investigar, porque a sociologia do trabalho procura, no fim de contas, elucidar um estado de coisas em que os humanos escapam simultaneamente à sociedade e ao trabalho, tal como a maioria das investigações sobre a guerra tenta entrever uma situação em que as guerras tenham desaparecido.
De qualquer modo, a convergência final entre o evolucionismo social e a “utopia” neste ponto é evidente, tal como os partidários da abolição imediata do Estado coincidem com os que não o são numa visão do futuro em que o Estado estará ausente. Em todo o caso,
“uma comunidade natural humana do não-trabalho só pode ser produzida através da sociedade do trabalho. Neste sentido, a ‘não-sociologia’ é ela própria o fruto prometido da sociologia, e é assim que a sociologia se supera a si mesma, senão nas suas análises imediatas, pelo menos nas suas visões de mais longo prazo. O erro seria confundir umas com as outras” (1970: 365/6),
uma confusão, evidentemente, entre a transição socialista e o comunismo.
3 – Ação-trabalho-atividade
A riqueza da análise de Naville dá aqui um salto. Sob o subtítulo “A ação (práxis) difere do trabalho”, capítulo IX do seu primeiro tomo, ele lança-se numa análise tão inspirada quanto erudita e corajosa.
É pela razão geral que acabamos de ver no final do ponto anterior — isto é, não confundir a temporalidade dos desenvolvimentos — que importa evitar a substituição mecânica da categoria de ação pela de trabalho, substituição que Marx evitou expressamente, mas na qual caíram Hegel e Proudhon.
“Se o trabalho é concebido como simples ação, práxis mais do que pragma [ato prático] ou techné [saber-fazer], ter-se-á tendência a encontrar nele [no trabalho] o princípio da liberdade humana” (1970: 366).
Pode afirmar-se absolutamente com Goethe que “no princípio foi a ação”; mas pode também dizer-se que no fim será a ação. Porém, se a ação de que se fala é na realidade trabalho, com as suas formas socialmente condicionadas, a perenidade da categoria ação equivalerá à da categoria trabalho…
Contudo, o trabalho é considerado sob as suas formas de compulsão (contrainte), mesmo quando se admite que originalmente e no indivíduo ele era liberdade espontânea [esta afirmação é complexa, porque não havia liberdade espontânea no início da hominização: era preciso alimentar-se e proteger-se do meio natural]; a prova está em que a análise distingue fortemente entre trabalho e lazer (loisir), entre laboração e distração — que são, portanto, duas formas de atividade.
“Este carácter trágico e ambíguo da atividade-trabalho foi assinalado não apenas por Hegel, mas também por Goethe no seu mito faustiano, razão pela qual não é por acaso que Fausto morre no momento em que anuncia que vai pôr em prática o seu princípio: no princípio foi a ação, contudo esta ação é finalmente o trabalho, a condenação dos seres humanos a construir a civilização. E a contradição entre o trabalho e a pura atividade criadora aparece no momento em que Fausto, cegamente, exclama: «Oxalá pudesse ver uma atividade semelhante, viver sobre um solo livre, no seio de um povo livre! Então diria a esse instante: Detém-te, instante, és tão belo!» — contradição pela qual morre no ato” (1970: 366).
Acontece que a práxis é eterna como o movimento, ao passo que o trabalho é transitório, afirma Naville (des-ontologizando o conceito). A categoria da práxis, onde se encontra de facto o fundamento da sociologia marxista, não é, contudo, mais do que uma aproximação filosófica. Marx utiliza-a abundantemente nos seus escritos de juventude. Mas a análise científica conduziu-o, a partir da sua polémica com Proudhon e do seu estudo aprofundado de Smith, Ricardo, Saint-Simon e dos socialistas franceses, a substituí-la pela concepção muito mais precisa de trabalho.
“Na interpretação brutal dos economistas ingleses, e também no utilitarismo e no hedonismo, encontrou algo mais do que um sentimento romântico da criação humana: encontrou uma atividade compulsiva (contrainte), canalizada por um sistema produtivo que destrói toda a relação natural entre criador e criatura. Este progresso está já estabelecido ao longo de A Ideologia Alemã” (1970: 367).[20]
Opor conhecimento, especulação, à práxis, à ação, não era suficiente. A análise sociológica e económica mostra que se o conhecimento é fruto da ação, se as representações e as ideologias nascem da atividade e retornam sobre ela, este processo assume na história formas características que obrigam a ir além da categoria de ação para chegar à de produção condicionada: o trabalho propriamente dito.
“O trabalho torna-se assim a forma geral pela qual se exprimem inicialmente todas as relações sociais, com os seus efeitos no domínio da apropriação. Como atividade geral, como práxis, o caminho dos grupos humanos é criação; mas como trabalho é criatura separada, alienação. Na criação, o homem surge perante si e perante os outros; mas na alienação que resulta do trabalho, da compulsão para outro, o homem torna-se estrangeiro a si e aos outros. Criador, ele ganha-se; produtor, ele perde-se. Em todos os casos, ele é ativo, e a sua atividade permanece como a chave da sua situação social; mas só a análise científica das condições do seu trabalho lhe pode permitir transformar esta situação em vantagem para si” (1970: 367).
A sociologia do trabalho permite assim passar de uma atitude indiferenciada ao estudo dos conceitos particulares, que emergem de mecanismos específicos. O postulado realista da atividade, que permite à sociologia abandonar as vias especulativas e teológicas, permite-lhe ir mais longe. No entanto, é necessário entrar antes na via da análise científica: o conceito cego, trágico, de alienação é substituído pela elucidação de um mecanismo, isto é, o estudo das relações quantitativas dos componentes concretos [do trabalho] (o que constitui toda uma declaração de princípios anti-estalinista e anti-social-democrata!).[21]
“Empiricamente e teoricamente, a sociologia manipulará doravante magnitudes e procurará nas suas combinações o sentido de uma evolução onde o trabalho como tal desaparecerá. Esta é a lição fundamental que Marx retirou da sua passagem de Hegel para Ricardo, Proudhon, Saint-Simon, Fourier e Owen; tal é também o sentido da sociologia de Comte, que remonta a Montesquieu, Condorcet e mesmo Kant” (Naville, 1970: 368).
Prosseguindo agora com o último capítulo do primeiro tomo de Le Nouveau Léviathan, “Travail et non-travail”, Naville começa por recordar algo que já vinha afirmando: que o trabalho é uma imposição (1970: 488); uma coacção; um constrangimento. Acrescenta que, se esta imposição é persistente, se o ser humano não pode escapar-lhe, acaba “narcotizado” ou reduzido à impotência. Afirma que mesmo um “trabalho” de apenas duas horas é incompatível com a atividade livre de toda forma de “escravatura”. Ou seja: qualquer ser humano que possa exercer uma atividade livre não estará disposto, nem por um segundo, a submeter-se a um trabalho imposto externamente, alienado.
Afirma, por outro lado, que não quer discutir — neste capítulo — o problema técnico de quantas horas se deveria trabalhar atualmente, dado o desenvolvimento das forças produtivas. Propõe que
“retenhamos esta consequência mais geral: que a antítese fundamental do trabalho não é o trabalho melhorado ou ‘valorizado’, mas o não-trabalho” (1970: 489).
Acrescenta Naville que numa sociedade regulada pela “necessidade de ferro” do trabalho, os períodos de descanso não podem ser outra coisa senão tempos de preparação para um novo esforço produtivo. O repouso não é mais que o magro prémio do esgotamento e a promessa de uma próxima tensão. “O trabalho é a medida da sociedade”; mas esta medida aplica-se a grupos que a sofrem de modo muito desigual: daí a existência de classes trabalhadoras, por um lado, e classes não apenas improdutivas, mas ociosas, por outro. Daí a primeira reivindicação das classes trabalhadoras: “quem não trabalha não come”, recordada por Lenine nos primeiros anos da Revolução Russa (e que Naville indica ser formulada pela primeira vez por Paulo de Tarso, apóstolo do cristianismo).[22]
Fourier afirma que o trabalho é odioso na civilização devido à insuficiência do salário, etc. Mas é notável que, para tornar o trabalho atraente, Fourier pensava em modificar o exercício, o ritmo e o ambiente mais do que a duração diária do trabalho. Em todo o caso, a sua perspectiva é a do “trabalho atraente”, mas trabalho, ainda assim. Este trabalho atraente permanece como o pivô de um trabalho produtivo necessário: uma espécie de “felicidade no trabalho” (posição que não é socialista-revolucionária, acrescentamos nós). Na imaginação de Fourier, como na de todos os socialistas do século XIX, afirma Naville, o trabalho deveria assumir formas agradáveis, podendo mesmo tornar-se jogo: bastaria, para eles, regressar às bases do prazer, que é atividade criadora do organismo (perspectiva defendida por Proudhon).
Por conseguinte, esta confusão entre jogo — uma atividade livre — e o trabalho produtivo moderno — uma atividade alienada — mascara uma dialética mais profunda do que a que se manifesta à superfície. A atividade do organismo é, antes de tudo, uma necessidade no sentido de uma propriedade intrínseca deste. O movimento é o seu modo fundamental de existência. O sofrimento e a preocupação não são estranhos às condições mais naturais da atividade (é evidente que aqui o conceito de “naturais” é utilizado de certo modo de forma ontológica, não assim o trabalho como tal). Canalizada nas formas modernas de produção, toda atividade se torna trabalho. Naville explica que uma das questões menos compreendidas da sociologia de Marx
“é aquela que combina a análise mais despojada das condições reais de trabalho com o recurso à antítese mais profunda que anima a espécie humana: a que opõe o trabalho ao não-trabalho, à felicidade” (1970: 491).
Naville assinala que nas suas primeiras polémicas contra os hegelianos de esquerda, e contra Stirner e Proudhon, Marx e Engels substituíram os planos de valorização do trabalho assalariado e de justiça social por uma reivindicação muito mais total.
“Aquilo que o comunismo vem suprimir em definitivo, escrevem eles em 1844, não é apenas a condição feudal ou capitalista do trabalho: é o trabalho como tal” (1970: 491).[23]
E esta supressão — o único fim que pode ser confessado sem vergonha pela humanidade — não é possível através de um recurso dogmático ou utópico, aqui e agora, a um estado social feliz; mas sim através de uma lenta evolução atravessada por acontecimentos cuja orientação deverá encontrar o seu ponto de apoio no estudo científico de todo o movimento social. Marx opõe-se assim aos seus predecessores num duplo sentido: a) em primeiro lugar, porque afirmar de antemão que a verdadeira liberdade humana só é possível sob condições que excluem aquilo que hoje chamamos trabalho; b) e, além disso, porque tal estado não pode ser alcançado pela imediaticidade do desejo, e porque aqueles autores falham desde o início em compreender — com todo o rigor — as leis de funcionamento da sociedade actual (1970: 492).
O que Marx procura é o fundamento de uma crítica que se inscreva nas leis da evolução social. Uma sociedade, um modo de trabalho, que evolui e se critica a si mesmo. Elucidar a sua estrutura funcional é também estudar o sentido em que evolui, as contradições mais profundas que a determinam, a crítica que ela representa para si própria. A crítica de um modo de trabalho, de um modo de produção, implica igualmente a crítica do não-trabalho que lhe é correlativo. O não-trabalho aparece, a seu tempo, como categoria histórica, mais do que como critério moral.
Os primeiros pensadores sociais, começando por Aristóteles, conheciam bem o problema, mas não conseguiram pensá-lo para além de um certo estatuto de eternidade, encarnado na cidade grega ideal ou, em Santo Agostinho, na Cidade de Deus. A separação entre trabalho e não-trabalho aparecia como efeito de um decreto divino, de um desígnio supremo, conforme aos equilíbrios harmónicos da natureza. E essa mesma ficção foi descrita mais tarde como sátira por Mandeville e como idílio por Bastiat. Sob a forma do evolucionismo social nascente que impregna a obra dos primeiros socialistas, Saint-Simon e Auguste Comte, o pensamento de Marx e Engels segue um outro rumo: “O estudo das condições de trabalho no sistema capitalista torna-se, aos seus olhos, indissociável das condições do não-trabalho, o qual só pode ser tratado como categoria histórica. A dialética do trabalho e do seu contrário adquire agora plena importância” (1970: 493).
Ao mesmo tempo que é necessário saber como se transforma o trabalho, é necessário elucidar como evoluem as formas de não-trabalho. “Se tomarmos a vida inteira do ser humano, o trabalho só pode constituir uma parte da existência social humana” (1970: 493). É a parte fundamental, acrescenta Naville, “mas ela só pode ser compreendida em função da outra parte” (1970: 493):
“O terreno do trabalho aparece, em favor do terreno do não-trabalho, como sua condição” (1970: 493).
No indivíduo, a infância é a época por excelência do não-trabalho; nas sociedades muito primitivas, com produtividade muito baixa, o não-trabalho ocupa longos intervalos de tempo, que existem, aliás, em estado natural nos países de longos invernos ou de calores periódicos excessivos.
“Mas com o crescimento das sociedades nas zonas temperadas, entre elas a Europa, e com o desenvolvimento cada vez mais envolvente da economia mercantil, e depois capitalista, o não-trabalho confunde-se cada vez mais com o uso do excedente da produção social” (1970: 493).
O problema da formação e repartição da mais-valia transformou-se no centro de uma reflexão sobre o não-trabalho. “A novidade da posição de Marx consiste em ter compreendido que o adágio ‘quem não trabalha não come’ e o ‘direito ao produto integral do trabalho’ são apenas formas transitórias de uma reivindicação operária que conduz a algo mais longe: à perspectiva do não-trabalho absoluto, isto é, de uma forma completamente inédita de uso da mais-valia social” (1970: 493).
Marx não era hedonista. Sem dúvida, não ignorava que a busca do prazer e do repouso — e, mais genericamente, do bem-estar — está inscrita no comportamento humano. Mas o estudo do homem real, da sociedade real, mostra que tal busca é inseparável de uma acção orientada para a transformação das condições de trabalho. É por uma transformação dialética que as condições presentes de trabalho — que não oferecem senão uma forma mutilada da felicidade — podem tornar-se a base de uma desalienação radical.
Naville critica então autores como o sociólogo burguês Veblen, que fundamentam a ociosidade das classes altas e o trabalho das classes baixas nos “instintos”: “O recurso aos instintos não facilita uma apreciação objetiva. Se se pretende alcançá-la, é preciso regressar à análise das condições sociais de produção e de ócio, de trabalho e de não-trabalho”.
No seu famoso folheto O Direito à Preguiça, Paul Lafargue combate a análise psicologista da ociosidade e do tempo livre. Demonstra que o não-trabalho só pode hoje ser abordado em função do trabalho, ou mesmo do sobretrabalho, que é o fundamento do consumo ocioso, da distração. Se os produtores têm de trabalhar num sistema fundado sobre a alta produtividade do trabalho — porque o preço do trabalho necessário, o salário, é o meio essencial de ocupar a vida — então eles têm também direito à preguiça, ao consumo ocioso. Certamente, na atualidade, tal “preguiça” é apenas uma pausa num intervalo de esforços contínuos, um tempo de recuperação inserido numa cadeia contínua de dispêndio da força de trabalho. “Mas deve tender, cada vez mais, a tornar-se um repouso puro — o que não é possível, para começar, senão pela abolição do assalariado” [não sabemos se é possível falar de “repouso puro”, mas cremos entender o destino do argumento: como fazer com que o trabalho se torne atividade socialmente livre — dizemos socialmente, pois a natureza permanece um limite intransponível, embora continuamente deslocado em escala histórica].[24] Se se parte da psicologia dos instintos — muito vigorosa depois de Darwin — a questão toma um sentido biológico ou moral, mas torna-se sociologicamente insolúvel.
“A inatividade pura é contrária à própria manifestação de existência de organismos vivos. O organismo é sede de intercâmbios ativos constantes com o meio próximo e distante. A inatividade total é a morte. Mas o não-trabalho não é inatividade; é, pelo contrário, atividade — a atividade que já não tem preço. Como tal, torna-se felicidade, genus, género, satisfação das necessidades humanas” (1970: 495).
(Os conceitos de atividade e ser genérico remetem-se mutuamente e, apesar das nossas diferenças, Lukács trabalha-os bem na sua Ontologia do Ser Social, obra que ficharemos numa próxima ocasião.)
“Se a felicidade é ‘desinteressada’, é porque só pode ser concebida em oposição ao interesse tal como se apresenta na sociedade antagonista, onde os apropriadores da mais-valia se apropriam simultaneamente do direito à preguiça. De facto, a felicidade é ela própria ‘interesse’, mas noutro sentido: como participação direta no movimento da natureza, isto é, como liberdade” (1970: 495).
(É claro que nos custa assimilar este conceito de Naville tal como está.)
A sociedade humana desenvolve-se, e a potência produtiva, bem como as necessidades comuns, evoluem com ela, de tal forma que uma reapropriação do ser humano por si mesmo — e através dos seres humanos entre si — só é concebível como uma metamorfose das formas sociais do trabalho. A primeira condição desta transformação é a redução considerável da jornada de trabalho [posição partilhada por Artous], e a revolução das formas de repartição da mais-valia social [algo que terá de ser conquistado numa transição autenticamente socialista]. Pergunta-se como tal transformação é psicologicamente possível e se o trabalho não está ligado indefinidamente à necessidade [Naville mostra plena consciência da complexidade da problemática, que se torna inevitável ao analisar as sociedades de transição pós-capitalistas e as suas imposições; a sua sensibilidade é muito semelhante à nossa]; e se a incitação sistemática ao trabalho através do aguilhão da fome não será a única forma possível de sobrevivência nas nossas sociedades altamente produtivas.
4 – Uma comunidade de intercâmbios sociais
Nestas condições, não será a “felicidade no trabalho” apenas um mito?
Naville interroga-se sobre o destino das divisões entre trabalho manual e intelectual, entre tarefas agradáveis e penosas, entre postos de direção e de execução, etc. “Os que enfrentaram a questão na perspectiva de Marx tentaram um compromisso [Artous afirma que o próprio Marx tentou, de certa forma, esse ‘compromisso’]. Eles, de certo modo, ‘esqueceram’ (escompté) que, a par da socialização dos meios de produção e de troca, o interesse dos produtores pelo seu trabalho poderia adquirir outro sentido e tornar-se uma cooperação voluntária (uma civilização de produtores associados).[25] O capitalismo, escrevia por exemplo Kautsky, venceu a antiga preguiça do homem, e «quando a jornada de trabalho for razoavelmente reduzida, a massa dos operários entregar-se-á, por simples hábito, a um trabalho regular»; por fim, «dever-se-á esforçar por tornar o trabalho um prazer; se o trabalho se tornar agradável, irá-se até ele com alegria»” (1970: 496/7)… (Seria de perguntar a Kautsky porque é que ele nunca trabalhou numa fábrica!)
O que precede desconsidera as contradições mais profundas que Marx descobriu no regime do salariado, mesmo quando socializado. Isto significa não atribuir importância a uma diferença essencial entre o trabalho tolerável e o não-trabalho, entre o consumo improdutivo e o usufruto livre. Se essa diferença pudesse ser imediatamente reduzida, não existiria. O importante é que o problema seja colocado sobre as suas bases reais: é necessário que a sociedade possa comprometer-se na via de uma forte redução simultânea do sobretrabalho e do trabalho necessário, o que parece impossível sem uma reapropriação social dos meios de produção essenciais.
Marx, longe de exigir a realização imediata da liberdade total intuída, demonstra que ganhos parciais podem ser conquistados nesta dinâmica, mesmo sob uma forma limitada.
“«O tempo de trabalho»,
escreve ele parafraseando uma crítica de Ricardo,
«mantém-se, mesmo se o valor de troca desaparece, a substância criadora da riqueza e a medida das despesas que a produção exige»” (1970: 497).
(Atenção à importância desta afirmação para avaliar a economia da transição socialista, pelo menos nos países que não pertencem ao centro imperialista.)
“Mas o tempo livre, o tempo de que se dispõe para usufruir do produto, para se desenvolver livremente — esta é a riqueza real; e este tempo não é, como o trabalho, regulado por uma necessidade exterior, em que a realização constitui uma escolha que é ou necessidade natural, ou dever social (em todo o caso, subsiste um elemento de necessidade exterior, o que é inevitável).”
Pelo simples facto de o tempo de trabalho estar limitado a uma medida normal, de eu o ocupar para mim e não para outro, a oposição social entre senhores e escravos desaparece: o trabalho torna-se realmente trabalho social;
“este trabalho adquire um carácter totalmente diferente, muito mais livre, e o tempo de trabalho de uma pessoa que dispõe de tempo livre é forçosamente de uma qualidade mais elevada do que o tempo de trabalho de uma simples besta de carga” (Ricardo citado por Marx, Naville, 1970: 497).[26]
E conclui Naville:
“Com a extensão do tempo livre, o trabalho e o não-trabalho começam ambos a mudar de sentido. Mas o tempo livre dos indivíduos não pode alargar-se senão à condição de se tornar plenamente o reverso do tempo de trabalho social; isto é, se a satisfação das necessidades for ela própria repartida socialmente [o conceito permanece ainda algo obscuro]. Essas necessidades sociais não serão mais do que necessidades enfrentáveis e não meros desejos; terão, portanto, um carácter limitado. Mas, a partir desse momento, é um limite que se espera que recue indefinidamente. Certamente, o socialismo de Estado [os Estados burocráticos do pós-guerra] está ainda longe de permitir grandes progressos nesse sentido. Ele lançou, porém [isto é, as sociedades pós-capitalistas], historicamente, o germe [embrião] — e não poderia fazê-lo senão como herdeiro do capitalismo, um regime social que já desenvolveu uma elevada produtividade. Só o comunismo plenamente desenvolvido, isto é, um tipo de comunidade de intercâmbios sociais cuja forma desenvolvida é ainda imprevisível, permitirá o desaparecimento da «procura solvente», porque, por definição, todas as necessidades se exprimirão sobre o terreno da liberdade [social], e o trabalho e o não-trabalho serão metamorfoseados em pura atividade criadora” (1970: 498).
A alienação transformar-se-á em reapropriação, do mesmo modo que a propriedade deixará de ser de um particular (propriedade capitalista) ou de um Estado (burocrático, uma falsa propriedade social), passando a tornar-se uma qualidade dos seres humanos — tudo isso deverá permitir, em última instância, metamorfosear o trabalho enquanto obrigação em atividade livre.
Bibliografia
Antoine Artous, “A lire: un extrait de «Le travail et l’emancipation», de Karl Marx”, Google.
Karl Marx, Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (Grundrisse), 1857/8, Siglo Veintiuno Editores, volume 2, México, 1980.
Pierre Naville, Le Nouveau Leviathan 1. De l’aliénation à la jouissance. La genèse de la sociologie du travail chez Marx et Engels, Éditions Anthropos, Paris, 1970.
György Lukács, Ontología del ser social. El trabajo, textos inéditos em castelhano, edição a cargo de Antonino Infranca e Miguel Vedda, Herramienta Ediciones, Argentina, 2016.
Nicholas Fox Weber, Mondrian, Alfred A. Knopf, Nova Iorque, 2024.
Imagem: Fernand Léger. “As escadas”. 1919-1920.
Notas
[1] A associação entre a cidade e a possibilidade do exercício social democrático da gestão dos assuntos foi-nos sugerida a partir dos textos de Castoriadis dedicados à Grécia clássica. [2] Nos seus Prolegómenos à Ontologia do Ser Social, Lukács responde às críticas dos seus discípulos à sua obra homónima, que ainda não chegámos a estudar. No entanto, talvez a própria ideia de escrever uma ontologia seja aquilo que lhe foi questionado, porque, como tal, uma ontologia é uma espécie de ensaio de investigação sobre categorias humanas trans-históricas, quando toda a gente sabe que o esforço de Marx foi no sentido de determinar historicamente a análise — isto é, não construir uma análise ontológico-antropológica (embora haja em Marx uma antropologia de grande riqueza), mas, como foi dito, determinar historicamente a análise. [3] O próprio conceito de ser humano como “ser social” não cremos poder resolvê-lo, trabalhá-lo, neste artigo-ficha, ficando por isso para outro texto. [4] Ao encerrarmos esta nota, neste momento em Londres, numa nova edição da conferência Historical Materialism e, mais em geral, no ambiente dos países imperialistas tradicionais, vê-se a pressão que o elemento tecnologia — leia-se hoje algoritmos e inteligência artificial — exerce não só sobre o imaginário social contemporâneo, mas também sobre a própria conferência. [5] Trótski fala em sentido evidentemente figurado quando afirma que a humanidade poderá “mover montanhas” e criar um “super-homem” (na realidade, um ser humano de tipo superior) e formulações do género, para evitar o fixismo de pensar que a “natureza” do homo sapiens não poderia continuar a evoluir — abordagem incorreta, embora não tenham ocorrido mudanças genéticas nele até hoje. Daniel Tanuro faz uma crítica insustentável a Trótski, acusando-o de “prometeico” por essas afirmações, quando é evidente — se analisarmos com um mínimo de honestidade intelectual — o seu afastamento de qualquer voluntarismo na planificação da transição socialista. [6] Este é um tema que deixamos evidentemente em aberto para os especialistas. [7] A este respeito, recordamos a crítica de Mészáros a Lukács, no sentido de que este último transformaria a lei do valor em lei trans-histórica, embora, ao escrevermos este texto, não recordemos a sua posição acerca da problemática aqui abordada (o seguidismo meloso de Lukács em relação ao estalinismo incomoda-nos sobremaneira).
Em sentido oposto, recordemos que Pierre Naville denunciava, em tempo real, as tentativas estalinistas de reduzir o trabalho de categoria social a categoria técnica, naturalizando-o: o conceito estalinista era o de “trabalho puro”. [8] Não podemos abordar aqui a discussão sobre a IA, mas, para além do impressionismo, ela constitui, em si mesma, um enorme debate com duas saídas possíveis: a) multiplicar a alienação do trabalho; b) abrir novos horizontes para a sua emancipação. [9] Cabe aqui discutir se tal autómato serve para submeter ainda mais o trabalho ou para o emancipar, bem como até que ponto serve ao desenvolvimento das forças produtivas ou destrutivas — questões que abordaremos na segunda parte do nosso tomo 2.
Os próprios conceitos de alienação e forças destrutivas impõem-se aqui automaticamente, mas não os podemos desenvolver neste momento. [10] Nos seus últimos trabalhos, falava-se do fim do trabalho num sentido reacionário e condenava-se historicamente a classe operária pela sua suposta incapacidade de hegemonizar a transformação social; além disso, de modo pessimista, afirmava-se que entre autonomia social e heteronomia social existia um limite ontológico intransponível, razão pela qual a alienação estaria condenada a ser uma espécie de destino eterno (os conceitos de autonomia e heteronomia, cremos recordar, Gorz tomava-os do importante sociólogo alemão Claus Offe, recentemente falecido). [11] Em notas anteriores assinalámos que Antoine Artous sublinha ser impossível decidir-se por uma ou outra alternativa — superação do trabalho ou redução do tempo de trabalho —, dado que na obra de Marx e Engels ambas as posições se apresentam “de modo intercambiável”, havendo nela uma indecisão; e que, a seu ver, a última palavra de Marx no tomo III de O Capital orienta-se no sentido da subsistência de uma área reduzida de trabalho necessário e de uma área alargada de tempo livre; isto é, na sua leitura, a conotação de trabalho seria, como em Lukács, “ontológica”: “Na medida em que esta passagem do livro III de O Capital explicita mais claramente do que os Grundrisse as consequências dessa abordagem [de Marx numa das suas últimas obras não publicadas], a esfera do trabalho não pode desaparecer. Estamos longe das fórmulas de A Ideologia Alemã que invocam uma ‘transformação do trabalho em atividade livre’” (“A lire: un extrait de «Le travail et l’emancipation», de Karl Marx”). [12] É verdade que o lugar do materialismo não está no terreno da história, o que o impediria de ser uma “sistemática”, mas também é verdade que ele não está fora da história, à maneira de Althusser: Marx afirmou sempre que buscava uma análise historicamente determinada, embora, é verdade, a sua análise do capitalismo seja estilizada e não “historicista”. [13] O carácter “operatório” em Naville é importante porque ele atua mais como “cientista” do que como político — campos que não são idênticos. Como sociólogo que era, atribuía grande importância à análise quantitativa, cujo desenvolvimento não podemos expor aqui, mas que nos foi extremamente instrutivo, dado que na nossa prática quotidiana — ou pelo menos na minha — trabalhamos mais com análise qualitativa do que com quantitativa. [14] É um facto que Naville, em última instância, se apresentava como sociólogo, mais especificamente sociólogo do trabalho — algo de que não tínhamos tomado nota até agora e que, além disso, dialoga positivamente com toda a tradição anterior das ciências sociais e da filosofia de maneira extremamente aguda e erudita, embora revele traços “positivistas” em determinados momentos. [15] É interessante a observação que Naville faz aqui a propósito da palavra “crítica”: assinala que a sua inspiração está em Kant. A “dogmática” repugnava-lhe, tanto em Hegel como nos primeiros socialistas (isto é, a edificação de sistemas fechados). [16] Naville lembra-nos aqui algo fundamental que os scholars costumam esquecer: a necessidade de conhecer em primeira mão, na experiência própria, a classe trabalhadora (recordamos aqui o honesto reconhecimento de Althusser de que não conhecia a classe operária francesa, de que na sua célula de intelectuais não havia nenhum operário, e de que a única coisa que conhecia era o PCF, suposta encarnação dessa mesma classe). Paradoxo dos grandes: tantos marxistas que falam da classe operária sem nunca terem posto os pés num local de trabalho! [17] Note-se que aqui Naville não fala do tempo de trabalho necessário e do tempo livre como antítese principal, mas de trabalho e não-trabalho como a antítese “fundante” das relações laborais. [18] Dizemos utopia mal compreendida porque, a nosso ver, a dimensão utópica é importante e porque, além disso, temos uma interpretação diferente do habitual do conhecido folheto de Engels Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. Neste ponto, inspiramo-nos na obra de Ernst Bloch O Princípio Esperança. [19] Neste enfoque seguimos Antoine Artous, embora não no que diz respeito à sua análise do trabalho, onde se inclina por uma posição que nos parece algo conservadora. De qualquer modo, falta ainda estudarmos o seu livro Travail et emancipation humaine, de 2003, que ainda não conseguimos obter. [20] Recordemos que Artous sublinha expressamente que Marx deixou para trás as visões “românticas” que tinha sobre o futuro do trabalho aquando da redacção de O Capital. [21] É claro que assim é, pois estas correntes burocráticas fetichizam o trabalho tal como ele é, sem buscar a sua transformação radical. Não foi um dos doze apóstolos, não esteve na última ceia. [22] Paulo de Tarso, de nome judaico Saulo de Tarso, ou Saulo Paulo, mais conhecido como São Paulo, viveu aproximadamente entre o ano 5 depois de Cristo e 58 ou 65. [23] Naville não parece incomodar-se com o contraste entre os textos do jovem Marx e do Marx maduro. Por outro lado, como se vê, de facto não tinha lido os Grundrisse quando escreveu este primeiro tomo do seu Opus Magnum, nem, por uma razão que desconhecemos, introduz aqui a questão do maquinismo e do autómato, que dá fundamento material à posição que, de qualquer modo, defende. [24] Duas observações aqui:
a) existe uma fronteira humano-natural intransponível, na medida em que somos seres biológicos. Em O Mal-Estar na Civilização, Freud trata com agudeza este problema, embora algumas das suas formulações permaneçam a-históricas, porque o próprio aparelho psíquico pode sofrer transformações (León Rozitchner);
b) a linha de fronteira humano-natural desloca-se historicamente, mas é imperdoável perder de vista hoje a capacidade humana capitalista de criar forças destrutivas, de autodestruição. [25] É significativo que, na mesa que me coube em Historical Materialism nesta edição de 2025, se tenha discutido muito as formas de “socialização do capital”, mas nada sobre as formas de socialização do trabalho. Recordou-se que a comissão de socialização da produção dirigida por Karl Kautsky no início dos anos 1920, na República de Weimar, não socializou nada, mas nenhuma reflexão foi colocada em cima da mesa acerca de como se socializaria o trabalho. Até certo ponto, tentámos responder a isto na nossa intervenção (ver nesta mesma edição o nosso “Suplemento semanal marxismo no século XXI”). [26] Não trabalhámos nesta ficha o conceito de trabalho social porque Naville não o desenvolve, mas subentende-se que se refere a uma circunstância em que é a coletividade como tal que assume o trabalho: um estádio social em que desaparece a exploração do trabalho e emerge o trabalho como atividade (a interpretação é nossa).




