Materialismo histórico e transição socialista (parte 1)

Curso de verão sobre os capítulos 2, 5 e 6 do livro O marxismo e a transição socialista (vol. 1).

A seguir, apresentamos a intervenção oral transcrita e editada de Roberto Sáenz no curso de verão para os jovens do Nuevo MAS e de nossa corrente internacional. Foi uma intervenção feita para os militantes do partido durante o Curso de verão sobre os capítulos 2, 5 e 6 do livro O marxismo e a transição socialista (vol. 1).

ROBERTO SÁENZ
12 abril, 2025

“(…) a ascensão histórica da burguesia ocorreu com relativa igualdade em todas as áreas da vida social; a burguesia se enriqueceu, se organizou, se formou política e esteticamente e, assim, acumulou hábitos de dominação; enquanto para o proletariado, como uma classe economicamente deserdada, todo o processo de autodeterminação assume um caráter político revolucionário intensamente unilateral, atingindo sua expressão máxima no partido comunista.” (Trotsky, Literatura e revolução)

1- Um debate estratégico

É preciso entender que esta é uma obra para “dentro” e para “fora”; que busca conquistar mais público para o partido e para a corrente – Sáenz faz referência ao seu livro, “O marxismo e a transição socialista“. Não é um texto destinado apenas à formação da militância. Ele tenta entrar em outro campo, o campo do debate teórico-político-estratégico marxista mais geral; abrir um novo campo na vida do partido, com um debate que também é militante, é uma elaboração teórica militante. Entrar nesse campo para fazer a disputa teórico-estratégica com as correntes, mas também na academia, na intelectualidade marxista internacional.

O formato do trabalho não é o do material militante clássico. O mundo das correntes revolucionárias está cheio de picaretas que não pensam e não estudam nada; nós não somos picaretas, por isso entramos com algo “pesado”, que está sendo traduzido em vários idiomas, configurando uma ofensiva que apenas se inicia, mas esperamos publicar em vários idiomas e editoras importantes; além disso, já começamos a trabalhar no volume 2.

Buscamos fazê-lo nesta nova etapa de crise, barbárie e revolução, na qual há um certo renascimento do marxismo, chamado a se multiplicar por conta da “crise poliédrica” do capitalismo. No campo da ecologia marxista esse renascimento é perceptível, já que há anos há diversas correntes ecológicas marxistas – entre elas a que nos parece mais séria, encarnada em Bellamy Foster, e em alguns autores ligados a ele. [1] No campo do feminismo também há de tudo; o que menos há é marxismo, mas há de tudo incluindo marxismo,  e isso se expressa em correntes políticas das mais diversas.

Há também um importante reavivamento marxista em torno do pessoal do Historical Materialism e seu esforço para publicar, sobretudo, jovens estudiosos marxistas, não esquecendo o mega-empreendimento de publicar as obras completas de Marx e Engels, com sede na Alemanha, mas envolvendo estudiosos marxistas de todo o mundo, a MEGA2.

Há também discussões crescentes sobre o caráter do imperialismo atual: muitos marxistas estão estudando o imperialismo no século XXI no campo teóricoassim como há um resgate da análise econômica no campo do marxismo (Michael Roberts e seu blog, com seu monitoramento muito sistemático da conjuntura econômica, é um sinal disso).[2]

O mesmo acontece com o “novo mundo” das redes sociais, que ocorre há anos. A socialização da elaboração política e teórica por meio delas é empolgante e colossal, contida em páginas militantes, outras nem tanto, trabalhos acadêmicos e outros (Inprecor, Contretemps, Historical Materialism, Izquierda web, Izquierda diario, Viento Sur, Sin Permiso, International Socialist, Counterfire, etc.), que, logicamente, não podem ser  “consumidos” olhando para a telinha de um celular e requerem algum formato de estudo mais sério – nós, que somos muito  século XX, sem o formato de papel e sem sublinhar não conseguimos estudar nada.[3]

A nova etapa apresenta problemas teóricos grandes . No passado, dizia-se “há que fazer política, não há que estudar porque já está tudo dito por Lênin, Trotsky ou quem quer que fosse. Hoje só afirmam isso as seitas dogmáticas inconsequentes. O problema, no entanto, é que no campo específico de nossa pesquisa não há grandes elaborações, muito menos discussões que não consistam na repetição de velhos dogmas (uma tendência na direção oposta é a generosa resenha que Nicolas González Varela vem fazendo de nosso volume 1 e que estamos publicando em nosso suplemento de domingo). [4]

No campo do balanço do stalinismo, houve muito desenvolvimento na historiografia depois da abertura dos arquivos da antiga URSS, isso é verdade, e essa é a matéria-prima da pesquisa teórica, mas justamente no campo da pesquisa teórica e estratégica, do balanço das revoluções anticapitalistas do século passado, da teoria da transição socialista e no campo do partido revolucionário e da estratégia revolucionária, não há muita discussão. De fato, há mais discussão sobre os problemas de estratégia, da hegemonia, o legado de Gramsci, etc., mas carecemos em grande medida do debate sobre a teoria da revolução e, acima de tudo, da transição.

Há uma grande e apaixonada discussão sobre a “marxologia”: o vai-e-vem, por assim dizer, sobre a obra de Marx (e, em menor grau, de Engels, embora Engels apareça mais nos debates sobre ecologia marxista).

O campo de reflexão que tentamos abrir “valentemente” (Nicolás dixit) com “O marxismo e a transição socialista” ainda não está na moda. Lembremos que Hegel assinalava em suas conferências sobre a “Filosofia da história“, sobre como as obras sempre têm seu momento histórico, sua atualidade (Wirklichkeit), o que remete à ideia de “realidade concreta”: tem a ver com o fato de que é o desenvolvimento da realidade que torna ‘válida’ uma determinada obra ou elaboração; o que hoje está em um cone de sombras amanhã poderá “brilhar”: as obras devem esperar seu tempo. E, logicamente, com a ruptura do mundo capitalista que estamos vivendo, com a crise do livre mercado, a perspectiva anticapitalista está se tornando mais atual, assim como questões como, por exemplo, a planificação econômica.

Houve, é claro, muita discussão sobre a teoria da revolução ao longo de quase todo século XX, até seu eclipse transitório após a queda do Muro de Berlim. Bensaïd reflete muito isso em sua elaboração, embora tenha ido longe demais em sua visão melancólica das coisas. Também houve muita discussão sobre o caráter social da URSS e dos demais Estados não capitalistas, com definições conceituais que se estendiam desde “Estado operário degenerado”, à consideração de tais Estados como diretamente ‘socialistas’, ou ainda as variantes “capitalistas de Estado”, “coletivistas burocráticas”, “socialistas de Estado”, etc…. [5]

Como a URSS entrou em colapso e, juntamente com o restante dos países do Leste Europeu, é um “buraco negro” com respeito à perspectiva socialista, não há muita discussão sobre as lições que podem ser aprendidas com ela. A China é um caso diferente, a discussão sobre esse país é extremamente atual, embora, em geral, com exceções como Au Loong Yu, ela seja feita em parâmetros que não são os do marxismo revolucionário (a “paixão” pela China cresce em proporção direta ao seu confronto com Trump)

Portanto, a questão é se a corrente e o partido conseguem de fato abrir um campo de elaboração teórica, estabelecendo um marco com uma elaboração que é nova, e que é uma tentativa de reconsiderar os debates estratégicos sobre a revolução e a transição socialista, não citando mecanicamente nossos mestres em geral, mas colocando-os em correspondência – contrastando, por assim dizer – a elaboração do marxismo revolucionário (Trotsky, Rosa, Lênin, Gramsci, Rakovsky) com a obra de Marx e Engels. Ocorre que Marx e Engels são assumidos, mas não explicitados na obra de Trotsky (que é quem poderia ter tido mais “tempo de vida” para fazer a avaliação dos acontecimentos na URSS; lembremos, caso seja necessário lembrar, que ele foi assassinado em agosto de 1940). Há em nossa obra uma tentativa de relançar a reflexão de um balanço estratégico sobre as sociedades pós-capitalistas à luz do trabalho de Marx e Engels

2- A necessidade de abrir as categorias do marxismo

Isso nos permite e, acima de tudo, nos obriga a abrir e repensar as categorias do marxismo: para pensar a categoria de Estado operário, pensar a categoria de Estado. Para pensar a categoria de burocracia stalinista, pensar a categoria de burocraciaPara pensar a categoria da revolução socialista, pensar a categoria de revolução social em MarxIr aos fundamentos no marxismo clássico das categorias usadas pelos marxistas revolucionários diante dos desafios de seu tempo: “Encontramos uma forte referência implícita a Kant na crítica das categorias econômicas de Marx. Assim como Kant com os cientistas naturais, Marx criticou os economistas por aceitarem as categorias econômicas simplesmente como dadas e repeti-las sem críticas, como ‘formas objetivas de pensamento’ que determinam a consciência cotidiana e a vida cotidiana. As categorias da vida econômica cotidiana, como valor, preço, dinheiro, mercado, salário, lucro, juros, etc., que os economistas assumem, são, no entanto, comparáveis às categorias transcendentais de Kant, porque determinam e possibilitam nossas experiências na vida econômica cotidiana.

Experiências que simultaneamente se deformam, ou seja, se pré-formam ideologicamente, uma vez que seu conteúdo formal mistifica o mundo dos fenômenos econômicos. As relações econômicas aparecem como ‘coisas sensoriais-extrasensoriais’ ou ‘coisas sociais’ dotadas de um ‘poder aparentemente transcendental’ como o dinheiro ou o capital. As relações sociais parecem ser regidas por relações de ‘coisas’ estranhas dotadas de propriedades místicas e dominadas por poderes anônimos, como os ‘mercados’. (Krätke, “Marx and Kant”)

E, de fato, embora nossa filiação teórico-filosófica seja a de Marx e Hegel (eventualmente também de Spinoza, vamos seguir estudando isso) e não a de Kant, de qualquer forma Hegel superou Kant ao contê-lo, e certamente é o mesmo caso de Marx; e é muito aguda a referência do autor à crítica das categorias que “pré-formam” – deformando-a – nossa experiência, algo absolutamente verificado nos países não-capitalistas burocráticos com relação ao problema da propriedade estatizada como “propriedade social”, por exemplo (veremos isso mais adiante e está desenvolvido extensamente em nosso volume 1).

Na mesma linha, o marxista social-democrata alemão acrescenta: “Mas isso só é possível [ou seja, a crítica do sistema, R.S.] se [se] compreender a natureza das categorias econômicas. Se, portanto, for capaz de desenvolver os ‘conceitos básicos puros’, incluindo as contradições subjacentes a eles. Assim, para Marx, a ‘crítica da economia política’ significa: desdobrar, desenvolver seus conceitos carregados de contradições, de modo algum óbvios e desconcertantes, desenvolver o conceito de valor, desenvolver o conceito de capital, desenvolver o conceito de concorrência e assim por diante. Atualmente, muitas pessoas entendem erroneamente esse programa crítico como filosofia. Entretanto, é uma ciência social crítica explicada por si mesma“. (Krätke, ”Marx and Kant”)

De qualquer forma, não concordamos de forma alguma com Krätke quanto ao fato de essa crítica não ter elementos filosóficos (pelo contrário, achamos que ela os tem e são muito importantes!) ou mesmo “metapolíticos”, como Varela nos aponta a partir do próprio título de sua resenha: “Metapolítica da transição” (em várias partes). [6] Porque é fato que nossa obra tenta demolir ou desmistificar conceitos como “burocracia operária” ou “propriedade estatizada”, que tão mal orientados estão para entender o que de fato ocorria na degeneração burocrática da ex-URSS, por exemplo, e que lições isso ensinou para a teoria da revolução e da transição socialista. [7]

Fazer uma avaliação crítica da experiência da transição, da transição frustrada para o socialismo, nos obriga a reabrir as categorias marxistas, a colocar em prática uma reavaliação de como o materialismo histórico funciona na transição: como funcionam as categorias de economia, política, estado, etc. na transição, onde, é preciso dizer de uma vez por todas e nós o fundamentamos em nosso volume 1, elas funcionam de forma diferente do que no capitalismo. E também uma coisa que sempre esteve presente na redação de nosso trabalho e nesta escola, que é nossa filiação filosófica ao marxismo, não como um exercício abstrato, mas “em função” da experiência histórica da luta contra o capitalismo e pelo socialismo (pela perspectiva comunista).

O volume 1 tem como “sobreposição” uma determinada teoria do Estado, da transição e da revolução. A teoria da revolução é deixada de lado nesse curso, assim como os capítulos mais filosóficos do tipo “Alienação e fetichismo”. O grupo estava mais inclinado a estudar neste verão a teoria da transição, ou seja, o capítulo 2 sobre o Estado, o capítulo 5 sobre a burocracia e o capítulo 6 sobre propriedade.

E, embora desenvolvamos isso mais adiante, devemos deixar claro que trazer à discussão o caráter específico da burocracia stalinista e da propriedade estatal não capitalista nos força a “colocar em jogo” as categorias do materialismo histórico em sociedades não capitalistas ou pós-capitalistas. Digo pós-capitalista de propósito, para que se possa ver que esse é um “capítulo teórico” (ou seja, um tema) que está delineado em nossos clássicos, mas não desenvolvido. Marx e Engels estavam muito preocupados em não ir além do que os fatos, as “tendências em ação”, poderiam levá-los. Essas tendências em ação eram aspectos que eles viam no capitalismo ou mesmo nas sociedades históricas (o chamado “comunismo primitivo”), prefigurações antecipadas das sociedades pós-capitalistas. Mas eles não viveram em sociedades pós-capitalistas; eles mal viveram a Comuna de Paris, que durou dez semanas.

Cabia à geração marxista revolucionária posterior se comparar com as sociedades pós-capitalistas, mesmo que o desenvolvimento de suas forças produtivas fosse atrasado (pós-capitalista no sentido da expropriação da burguesia). E isso significava, ao mesmo tempo, precisamente por causa do isolamento da Revolução Russa, medir-se, do ponto de vista teórico, com o fenômeno sem precedentes da burocratização de uma revolução socialista.

Portanto, nossa elaboração tenta preencher uma lacuna teórico-estratégica. [8] Porque agora não há mais desculpas para dizer “Não, se Marx e Engels disseram que não podíamos ver além do que as tendências em ação poderiam nos levar, não podemos dizer nada”: as tendências em ação nos levaram além, porque o século XX estava cheio de revoluções anticapitalistas e é uma questão de tirar as conclusões do caso! Assim, a questão é como as categorias do marxismo funcionam em sociedades pós-capitalistas ou não capitalistas, e se o marxismo, o materialismo histórico e a dialética marxista nos servem para entender criticamente o que aconteceu nessas sociedades burocratizadas, onde o capitalismo foi expropriado, mas a transição foi inibida, não levou ao socialismo (obviamente, achamos que são ferramentas formidáveis para isso, mas para isso é preciso colocá-las para funcionar de acordo com seus próprios critérios: ou seja, de uma forma materialista e dialética, viva e vital, e não de uma forma doutrinária, esquemática e morta). [9]

Esse é um dos esforços teóricos de nossa elaboração, que é teórica e não apenas ou mesmo essencialmente historiográfica. [10] Pode-se ler toneladas de livros muito interessantes de Pierre Broué ou Jean Jaques Marie – historiadores trotskistas da corrente lambertista, muito sérios – ou podem ler Isaac Deutscher, que escreve bem, mas é um filósofo objetivista da história, mais próximo no tempo de Lars T. Lih, historiador do bolchevismo, de Kautsky e Lênin com um ângulo “filisteu” (defensor da democracia burguesa). Os dois primeiros, e tampouco Lih, enquanto historiadores não se dedicam à teorização, trabalham dentro da estrutura das teorias de Trotsky ou da historiografia da URSS (Lih é discípulo de Stephen Cohen, historiador americano de Bukharin recentemente falecido);[11] e afirmam que “o trabalho do historiador não é teorizar. Ao mesmo tempo, todos os três são “historiadores desde acima”, porque fazem muita história das correntes internas do bolchevismo, do stalinismo e da social-democracia alemã, mas fazem pouca história social da URSS (não queremos ser injustos: suas obras são atravessadas por essa história social, são valiosas e cheias de lições e dados, mas seu objeto específico não é o caráter da antiga URSS como tal).

Um dos principais, se não o principal, historiador social “marxista” da URSS no século XX foi Moshe Lewin (é o que Bensaïd diz, e nós concordamos), que é muito pouco traduzido para o espanhol; ele tem um livro curto muito bom, traduzido e em pdf, chamado “El último combate de Lenin”, um texto de 67 (há também em espanhol “El siglo soviético”, mas não o recomendamos porque a tradução é tão ruim que o livro fica arruinado). Lewin estava na URSS durante a guerra; soldados russos o salvaram dos nazistas em sua retirada da Lituânia, ele viveu e trabalhou na URSS na década de 1940, portanto teve uma experiência em primeira mão. De qualquer forma, Lewin também não faz um trabalho teórico exaustivo sobre o que foi a URSS, ele usa a categoria de stalinismo para defini-la (achamos que seu texto mais teórico, que é realmente uma joia, é “Russia-URSS-Russia”, 1995).[12]

Esses e muitos outros trabalhos históricos não nos dão a chave teórica, eles nos dão uma suspeita de que o que acabou acontecendo foi um desastre (é óbvio que foi um desastre, mas o problema é a “medida” desse desastre, com um conceito de “medida” não quantitativo, mas qualitativo)[13], porém, insistimos, eles não nos dizem teoricamente o que aconteceu. Eles não conceituam ou tiram lições da experiência, porque são historiadores e porque não queriam mexer com a palavra escrita de Trotsky (especialmente Broué e Marie). Por exemplo, no trotskismo em geral, ninguém queria mexer na elaboração de Rakovsky porque ele acabou capitulando em 1934, além do fato de que, exceto por fragmentos, o stalinismo destruiu seu trabalho.

Entretanto, isso não se aplica a todos. Deutscher é mais um “filósofo da história” do que um historiador. É disso que Broué o acusa em seu Trotsky e ele está absolutamente certo, porque o que Deutscher faz é criticar Trotsky do ponto de vista de uma teoria objetivista (sua teoria) da revolução. Perdendo todas as perspectivas históricas, toda a distinção entre revolução burguesa e proletária, o historiador polonês vê Stalin como Napoleão: um bonapartista que, apesar de tudo, desempenha um papel revolucionário na história (“Deutscherismo y estalinismo”).

Há outras obras mais atuais e de maior alcance, não especificamente históricas, que também fornecem elementos para reflexão, embora, nesse caso, sejam obras de “classificação” dos debates no marxismo ocidental sobre a URSS (Western Marxism and the Soviet Union. A survey of Critical Theories and Debates Since 1917, Marcel van der Linden, Historical Materialism 17, Brill).

Mandel também tem suas reflexões, que citamos em outros textos (seu melhor trabalho sobre a URSS é o último: Power and Money, que estudamos em profundidade e citamos em O marxismo e a transição socialista), e Tony Cliff tem trabalhos sobre Lênin e Trotsky, dos quais até agora lemos apenas o volume I de seu Lenin.

3Estado proletário ou ditadura do proletariado?

No capítulo 2, sobre o estado ou semi-estado de transição, há um conjunto de determinações, e é melhor analisá-las em uma troca de ideias entre todos; o cerne é a diferença entre o estado proletário e a ditadura do proletariado. Qual definição de Estado, em relação ao estado de transição, lança mais luz sobre a experiência histórica e está mais próxima da teorização de Marx? O Estado proletário não é um conceito usado por Marx, mas sim a ditadura do proletariado, “a forma política finalmente descoberta por meio da qual a classe trabalhadora pode processar a transformação econômica”[14].

O peso da comprovação da definição recai sobre o caráter político: quem efetivamente domina o Estado. Pois, na transição socialista, a condição do poder político precede a transição econômica, diferentemente da transição do feudalismo para o capitalismo, em que a condição de dominação econômica da burguesia precedeu sua dominação política.

A ditadura do proletariado como “a forma política finalmente descoberta pela qual a classe trabalhadora pode processar a transformação econômica” é uma definição de Marx contemporânea à Comuna de Paris. A forma sociopolítica revela a mecânica, a dialética da transição.

Essa não é a definição clássica da ala esquerda do marxismo, o trotskismo, que favorecia outro tipo de definição que tinha a ver com o caráter da propriedade.

Ao longo do capítulo 2, tenta-se mostrar que a definição de Estado proletário, por si só, é uma abstração, porque não identifica o tipo de relação de governo que realmente representa o poder da classe trabalhadora, que é muito mais claramente definido como a ditadura do proletariado. Como de certa forma o próprio “título” (fraseado, palavras) diz, o elemento político-social tem mais peso na definição do que o elemento social-abstrato que aparece na categoria “Estado operário” (sem conotação específica de dominação).[15] O capítulo procura fazer uma recapitulação da teoria do Estado em Marx aplicada à transição para o socialismo, tentando explicar que a ditadura do proletariado dá mais peso à dominação política do que ao problema econômico-social. O ato revolucionário é sociopolítico, a transformação econômica é o processo de transição que começa com a revolução, mas não termina com ela. O processo de transição econômica, uma vez que a burguesia tenha sido expropriada, é em grande parte “reformista”, por isso a “terceira revolução” de Stalin -Deutscher dixit-, a coletivização forçada contrarrevolucionária, não foi compreendida de forma alguma, pela simples razão de que, em última análise, a economia não pode ser violada politicamente, são esferas diferentes.

O problema central da ditadura proletária não é a quantidade de propriedade estatizada ou a quantidade expropriada da burguesia; podem haver mil formas diferentes de coexistência da propriedade estatizada com a propriedade privada. O que define o caráter do Estado não é a propriedade, é o poder.

Entre todas as coisas deste capítulo, a mais importante é entender essa simples questão, entender que o marxismo economicista define o caráter do Estado pelo abstratamente social, e não pelo domínio da política, quando na transição as coisas são definidas pela política, não pela economia. Aparentemente, isso é contrário ao senso comum do marxismo, mas lembremo-nos de que, se há algo que caracteriza a dialética, é o fato de ela ser contrária ao senso comum. No campo da economia, na transição permanecem a autoexploração, a desigualdade, etc., elementos que serão resolvidos – que irão se dissolver na própria transição em concomitância com o desenvolvimento das forças produtivas e a revolução mundial.

Em suma, o capítulo 2 tenta equilibrar a balança em torno de uma definição que está em Marx (a definição de Marx de ditadura do proletariado) versus outras definições do marxismo revolucionário do século XX que vão na direção oposta: que haveria um Estado operário, mesmo que a classe trabalhadora não estivesse no poder. Havia um consenso de que a classe trabalhadora não estava no poder político, mas como tinha “poder social”, era um estado operário…

Nossa definição é diferente em vários aspectos. Ela é claramente diferente da definição tradicional do Estado operário e também de outra definição, que é a do capitalismo de Estado, da corrente anglo-saxônica. Por que essa corrente dizia que era o capitalismo de Estado e não o Estado operário? Porque ainda havia uma separação entre trabalho morto e trabalho vivo, o conceito de Marx em O Capital. O trabalho morto é o trabalho acumulado, o sistema de máquinas, o “corpo inorgânico de produção” (capítulo 6 ‘inédito’ de O Capital, volume 1); o que Marx chama de “modo de produção especificamente capitalista”. O corpo inorgânico de produção é o que tira todo o poder do artesão e tudo é colocado no sistema automatizado (mais próximo, na época, do “americanismo” de que Gramsci fala e que Nicolas comenta em suas anotações).

Como esse ainda era o caso na URSS, para essa corrente do trotskismo anglo-saxão havia um capitalismo de Estado. Em nossa opinião, isso é uma abstração, um abuso do conceito, porque na URSS e em outras revoluções anticapitalistas, os capitalistas foram expropriados. Nessas condições, falar de “capitalismo de estado” é confuso. É verdade que Lênin, em determinado momento, usou a definição para explicar a dependência única das empresas que a indústria estatizada significava, mas ele o fez apenas “entre aspas”: sua definição do caráter da Rússia Soviética era a de um “estado operário com deformações burocráticas”[16].

Há outra definição que é a do coletivismo burocrático, uma ideia de exploração coletiva da classe trabalhadora como um novo regime social; eles presumiram que um novo regime social estava chegando para substituir o capitalismo, o que significou uma perda total de perspectivas históricas (nenhum coletivismo burocrático substituiu o capitalismo imperialista no período pós-guerra!) Em nossa concepção, não houve nenhum novo regime social, nenhum novo modo de produção, nem a economia de transição é um modo de produção específico: foi a degeneração de uma revolução dos trabalhadores, da transição, que deu origem à criação de uma formação econômico-social específica; não um novo regime de acumulação, nem um novo modo de produção. [17]

Seguimos a definição de Christian Rakovsky, que é muito coerente porque “dá a volta” – faz uma inversão dialética – ao conceito de Lênin no debate sobre os sindicatos de “Estado operário com deformações burocráticas”. Rakovsky afirma, de fato, que ocorreu uma inversão de determinações: de um Estado operário com deformações burocráticas, passamos a um Estado burocrático com remanescentes proletários comunistas[18].

É interessante porque não é que ele dê uma cambalhota; uma elaboração marxista não dá cambalhotas em relação à elaboração anterior, nem dá saltos para trás como faz o doutrinarismo (a “ortodoxia” mal compreendida). Ela tenta dar um passo crítico à frente, mas sobre os ombros dos mestres (essa ideia nos vem do marxista inglês Tony Cliff); uma linha crítica de continuidade com a elaboração anterior, é claro, em uma correlação com a realidade.[19] Rakovsky inverte dialeticamente a definição de Lênin.

Trotsky também continua a definição de Lênin, mas é mais uma “reforma” do conceito de Lênin, de estado operário deformado para degenerado (é claro que foi, igualmente, um salto de qualidade, mas por ‘mera’ acumulação de quantidade; em Rakovsky há uma “inversão dialética” mais acentuada). [20] Dizemos que não: há um salto de qualidade que precisa ser capturado teoricamente, e é isso que Rakovsky faz. Porque seis milhões de mortos em decorrência da coletivização forçada, mais tudo o que ocorreu na década de 1930, a superexploração de trabalhadores e camponeses, o stakhanovismo, os Grandes Expurgos, o sistema Gulag (um sistema de trabalho forçado para construir infraestrutura), todo o fenômeno do stalinismo em seu auge, é um salto dramático de qualidade que a categoria de Trotsky não consegue captar.

O Capítulo 2 tem outras questões teóricas. Por exemplo, sobreposto ao caráter de classe do Estado está a reabsorção do Estado na sociedade. Há duas ideias sobre o Estado no marxismo: uma é a ideia do Estado de classe, da ditadura proletária, fundamental para o debate com os pós-modernistas e autonomistas[21]; e há outra ideia que é a do Estado separado, como um aparato que se separa da sociedade.

Sobre isso, há uma obra de Marx não publicada durante sua vida, Crítica da Filosofia do Estado de Hegel, de 1843, em que Marx, ainda um democrata radical em transição para o comunismo, afirma que “a democracia é, ao mesmo tempo, forma e conteúdo”. Ele quer dizer que a democracia é a tendência de a sociedade estar cada vez mais no Estado, de as tarefas de transição serem exercidas cada vez mais coletivamente. Se a sociedade está no Estado, algo sobra; como o maior continente é a sociedade, o que sobra é o Estado.

Isso remete à ideia do capítulo 3 de A Revolução Traída, de Trotsky, “Sociedade e Estado”. Trotsky diz que o sintoma de que algo está errado na URSS é que o Estado, em vez de tender a desaparecer, continua crescendo. O estado separado se reafirma sob o stalinismo. Há uma linha de continuidade em Trotsky em relação a Marx, porque um índice do funcionamento da transição é que o Estado tende a se tornar cada vez “menor” – o Estado como um aparato, nem é preciso dizer – e a sociedade cada vez maior – assumindo funções “estatais”, incluindo o planejamento econômico.

Há uma ideia em um dos capítulos, sugerida por Moshe Lewin, sobre como a política “bolchevique” muda insensivelmente de pista, do terreno da luta de classes para o terreno do fortalecimento do Estado, para as relações entre os Estados (geopolítica). Fortalecer o Estado soviético como tal, ainda menos como um aparato, não é o mesmo que fortalecer a Internacional Comunista e expandir a revolução: são dois caminhos diferentes. O que acontece é que, ao fundar um Estado, você se coloca em relações estatais, isso é inevitável; mas qual relação domina, a relação estatal ou a luta de classes?

Trotsky e Lênin disseram: podemos e devemos ter relações com o Estado inglês, mas não podemos subordinar a luta de classes na Inglaterra à nossa relação com o Estado inglês, porque assim faremos o jogo da burguesia inglesa.

No terreno teórico, houve uma mudança de direção, que se expressou no fato de que o Estado se tornou cada vez mais hipostasiado, cada vez maior como um aparato separado das massas.

Portanto, o estado de classe e Estado separado são duas abordagens teóricas do marxismo para o Estado. Mas há muitas outras coisas, por exemplo, a relação entre o Estado e a economia na transição não é a mesma que no capitalismo clássico; as relações dialéticas entre os dois terrenos são diferentes.

No caso da burguesia, no Bonapartismo, a burguesia perde o poder do Estado. O marxismo vulgar diz que Hitler era um representante do grande capital; o marxismo não vulgar diz, o que é mais complexo, que Hitler manteve sua autonomia relativa em relação aos capitalistas. Hitler fez o trabalho sujo, mas não é que ele fosse um representante direto do grande capital; o grande capital finalmente “se rendeu” a Hitler porque tinha mais medo da revolução, mas não era o tipo de governo que eles queriam. No entanto, na Alemanha nazista, o capitalismo sobreviveu.

O que dizia o trotskismo tradicional? Por analogia com o capitalismo, se a classe trabalhadora perder o poder político, não importa, “o Estado continua sendo dos trabalhadores”. Mas não é assim, a economia e a política, o Estado e a economia, funcionam de forma diferente na transição. As forças produtivas estabelecem limites materiais intransponíveis para a transformação social, mas o que, em última análise, determina tudo é a política, a luta de classes, porque não há solução para o desenvolvimento das forças produtivas no âmbito nacional – estamos falando de países atrasados ou dependentes; se a revolução não se expandisse, a URSS degeneraria (e degenerou!).

Se, no dia seguinte à revolução, for “a mesma porcaria” (a definição de Marx de “socialização da miséria”, acreditamos que  em A Ideologia Alemã), você perde as massas. Isso é um pouco do que aconteceu no final da guerra civil, na crise aguda do inverno de 1920/1, em Kronstadt, na tesoura entre as demandas imediatas e históricas, nas greves operárias contra o governo bolchevique, na raiva contra o governo de Lênin e Trotsky, que os mencheviques tentaram explorar em seu benefício (o que não significava que deveriam ser proscritos) e fazem parte das narrativas atuais da historiografia autonomista.

Se a guerra de todos contra todos continuar, você perderá as massas, porque parece que a revolução não quer cumprir sua promessa emancipatória. O debate sobre os sindicatos é instrutivo: “deixem que os sindicatos funcionem para que possam dar um pontapé nas necessidades imediatas, porque estamos sobrecarregados pelas necessidades históricas” (minha interpretação de Lênin).

Literalmente: a liderança bolchevique não podia dirigir a Rússia nem a Internacional Comunista. Trotsky e Lênin entregaram a Internacional ao demagogo populista Zinoviev (Lars T. Lih), ao ultraesquerdista Bela Kun e a Radek (que acordava todos os dias com uma ideia diferente – esse é o retrato que Trotsky faz dele, assim como ele aponta que Bukharin era um eterno adolescente). Lênin e Trotsky sempre chegavam – tarde – para tentar corrigir o rumo quando o desastre já havia sido feito.

O partido bolchevique deveria estar atento às tarefas históricas. Na época de Kronstadt, o menchevismo havia se fortalecido por baixo, levantando demandas imediatas. Havia raiva, nem todo mundo entendia a guerra civil.

Quando falamos de poder proletário, de democracia proletária, de democracia socialista, dos sovietes, desse tipo de regime de democracia direta e representativa, estamos falando de um mecanismo de relógio muito delicado, que é o poder da classe trabalhadora. Na investida revolucionária, ele é disparado, mas quando o poder é tomado, começa outra história, que é muito delicada porque o fermento das massas nem sempre permanece o mesmo.

Tudo isso dito teoricamente o leva de volta à ideia de democracia como forma e conteúdo, o que é muito bom para entender esse problema do desaparecimento do Estado.

Então, obviamente, há diferentes tipos de Estado; nem todos funcionam da mesma maneira. Essa imagem muito clara da economia como um terreno específico separado da política, uma sociedade civil tão clara, o mercado, etc., é uma exceção do capitalismo. Nas sociedades anteriores e na sociedade socialista de transição, esse não é o caso.

Há um exemplo dado por Pierre Vidal Naquet. Na Grécia antiga, para ter uma propriedade, era preciso ser um cidadão. Você podia ser um cidadão e não ter nenhuma propriedade (ou muito pouca). As relações entre política e economia eram invertidas: você possuía propriedade se fosse um cidadão, não era um cidadão se tivesse propriedade. É por causa dessa inversão entre economia e política que a luta de classes na antiguidade não era entre senhores e escravos, mas entre cidadãos com propriedade e cidadãos sem propriedade. Os cidadãos podiam ter propriedade ou não, mas os escravos não podiam ter propriedade. Eles eram proibidos de possuir propriedades. Por essa mesma razão, a lei comercial por excelência era a lei das nações, porque era a lei dos contratos dentro dos limites do império grego para lidar com estrangeiros (Pashukanis).

No capitalismo, se você possui uma propriedade, é um cidadão de primeira classe; na antiguidade, não era. A relação entre economia e política é invertida, porque se você não fosse descendente da antiga geração, se não fosse um cidadão, não poderia ter propriedades. No capitalismo, é o contrário: quanto mais propriedades você possui, mais cidadão você é.

Bibliografia:

Nicolás González Varela, “Metapolítica de la transición. A propósito del libro de Roberto Sáenz: El marxismo y la transición”, partes I, II y III, izquierda web.

W. F. Hegel, Ciencia de la lógica, Ediciones Solar, Argentina, 1968.

Michael R. Kräte, “Kant y Marx”, Sin Permiso, 02/01/25.

Karl Marx, “Notas marginales al Tratado de economía politica de Adolf Wagner, 1879/80”, traducción de Aricó, Blanco y Di Lisa, Dos Cuadrados, Estado Español, 2022.

Roberto Sáenz, “El debate sobre la planificación”, izquierda web.

León Trotsky, Literatura y revolución, Editorial Antídoto-Gallo Rojo, Argentina, 2004.

Notas:

[1] Sua plataforma é o clássico site marxista ianque Monthly Review, que teve Paul Sweezy à frente e que sempre foi, no campo geopolítico, pró-chinês (pró-CCP). Concordamos com sua visão da ecologia marxista e, obviamente, não com sua perspectiva geopolítica campista.

[2] Roberts também é pró-China e, ao contrário do mundo anglo-saxão do trotskismo, ele identifica a propriedade estatizada com o socialismo, para ser franco. Quanto ao resto, ele é economicista e um tanto mecânico em suas análises, mas isso não nega que ele seja um economista marxista sério.

[3] É impossível estudar séria e realmente sem sublinhar, tomar notas, fazer cadernos com essas notas, etc., e não por causa de qualquer esquematismo, mas porque a profundidade e a complexidade da estrutura conceitual dos textos de valor, contribuições clássicas ou atuais, resistem a ser compreendidas sem uma aplicação séria ao trabalho teórico e político.

O mesmo se aplica, é claro, ao treinamento militante: sem sentar em uma cadeira e estudar algumas horas por dia, é impossível ser treinado no campo do marxismo.

[4] O site Historical Materialism acaba de publicar um texto sobre a obra do economista marxista francês Charles Bettelheim, mas não é muito ambicioso: “Charles Bettelheim e a forma-valor: o problema da socialização real das forças produtivas na transição socialista”, Roberto Mozzachiodi.

[5] No socialismo revolucionário, no mundo latino, a posição do Estado operário degenerado da ex-URSS era e ainda é majoritária (embora isso tenha mudado muito nas últimas décadas), e no mundo anglo-saxão (Grã-Bretanha e Estados Unidos), a variante capitalista de Estado.

[6] Por metapolítica, encontramos uma definição de Alain Badiou que achamos interessante e que expressa em grande parte a intencionalidade de nosso trabalho: “Badiou argumenta contra as tradições da filosofia política, que ele associa a autores como Hannah Arendt e Claude Lefort, propondo não pensar ‘a política’ (le politique), mas sobre ‘política’ (la politique), como um modo ativo de pensar, uma forma de pensamento-prática. Ele continua pensando na proximidade dessa proposta como ‘a orientação metapolítica do pensamento de Althusser’ (…)” (Wikipedia, verbete sobre Metapolítica).

Aqui podemos apontar duas coisas. Em primeiro lugar, não vemos como excluir a ideia de uma abordagem filosófico-política ou “metapolítica”, embora a distinção de Badiou de pensar de uma forma “filosoficamente ativa” (ou seja, de um ângulo da filosofia política que corresponda ao que emerge nesse terreno na experiência da transição) nos pareça nítida e, em segundo lugar, que, de fato, parte do apelo dos textos da abordagem “metapolítica” de Althusser é que se trata de uma abordagem ‘filosófica’ da abordagem “metapolítica”, que parte da atração dos textos de Althusser, além das diferenças que temos com ele, é o caráter político-filosófico e não abstrato de muitos de seus textos (são intervenções filosófico-políticas em certas conjunturas ou certos debates que os tornam atraentes, além do fato de estarmos muito distantes de suas posições estruturalistas e objetivistas).

[7] Krätke reivindica a tradição do “marxismo sociológico” da escola do austro-marxismo, com a qual não temos a menor simpatia (outra das tradições com traços objetivistas oriundas da Segunda Internacional).

[8] Juan Dal Maso publicou alguns artigos rotineiros sobre a teoria da revolução permanente no izquierda diario, mas em nenhum caso ele realmente a aprecia nas circunstâncias concretas da revolução no século passado: a burocratização da Revolução Russa, o surgimento de revoluções anticapitalistas no segundo período pós-guerra. Nessas condições, é impossível fugir de uma abordagem vazia e doutrinária da obra de Leon Trotsky.  Dal Maso, Juan. “Marxismo e procedimentos lógicos: o caso Trotsky”. Ideas de Izquierda, 02/03/25.

[9] Lênin exigiu essa mesma abordagem do marxismo em sua crítica ao evolucionismo vulgar em seus textos filosóficos de 1914, 1915 e anos subsequentes (“Karl Marx”, “Notas sobre a Ciência da Lógica de Hegel”, “Sobre a Questão da Dialética”, “Sobre o Significado do Materialismo Militante”, o texto de sua contribuição para a revista “Sob a Bandeira do Marxismo”, etc.).

[10] Recebemos algumas críticas de que nosso trabalho não desenvolve “suficientemente” as questões históricas, a história da URSS e de outros países não capitalistas. Mas nosso trabalho não é historiográfico: ele tenta contribuir, a partir do ângulo da teoria marxista, para a análise crítica da degeneração burocrática da URSS e das lições que ela deixou para o futuro, para contribuir com a teoria da revolução e a teoria da transição socialista, e é por isso que ele não é realmente uma atualização historiográfica, porque esse não é o objeto de nosso esforço.

[11] Por sua vez, o jovem historiador Eric Blanc é um discípulo de Lih e um promotor ativo de uma política socialista reformista para os EUA, onde ele considera impossível pensar em uma política revolucionária de tomada do poder….

[12] Isso é o que diz um dos principais discípulos de Lewin, Denis Paillard.

[13] “Algo, ou uma qualidade como a que repousa em tais relações, é empurrado para além de si mesmo, para aquilo que não tem medida, e se perde por meio da simples variação de sua magnitude” (Hegel, 1978: 475).

[14] Em suas críticas ao nosso trabalho, Nicolás González Varela aprecia bem a “unicidade” entre economia e política observada na transição socialista, mas talvez ele não perceba duas coisas: a) que em nenhum caso afirmamos que a transição poderia passar sem algum tipo de Estado (que tipo de Estado é igualmente um debate, porque Nicolás parece pensar que seria alguma forma de “capitalismo de Estado”), e b) que não nos escapa que a base material do Estado burocrático são as relações de auto exploração subsistentes na transição, que, como Pierre Naville afirmou classicamente, de relações que eram, por assim dizer, “multilaterais” em uma transição autenticamente socialista, foram transformadas sob o stalinismo em relações de exploração unilateral. Ou, como Nicolas afirma: “Como vimos na história [colocamos história com letra minúscula, porque deixamos a letra maiúscula para a humanidade ativa que transforma a natureza e a sociedade], o Estado sempre reproduz, mais cedo ou mais tarde, a apropriação que prevalece na sociedade” (“Metapolítica da transição”, III).

[15] Hal Draper faz a mesma observação em seu Karl Marx Theory of Revolution, vol. 1, quando afirma que Marx usa a categoria de ditadura proletária, e não uma categoria difusa de algum tipo de sociedade, ao tentar explicar o governo proletário na transição. Embora Draper tenha defendido a definição errônea de coletivismo burocrático para a URSS, uma definição que, de qualquer forma, não entra diretamente em seu trabalho, ele está absolutamente certo quanto à conotação política que vê na definição sociopolítica de Marx de ditadura proletária.

Nisso, como em muitas outras coisas, há continuidade no trabalho de Marx, porque já em sua juventude ele diferenciava uma revolução política com um conteúdo social de uma revolução social com um conteúdo político: esta última lhe parecia uma definição absurda (Marxism and the Socialist Transition, vol. 1).

[16] Voltaremos a essa discussão em nosso volume 2. No Sul global, mais precisamente na América Latina, a definição hegemônica entre as correntes sobre a URSS sempre foi a do Estado operário (ou seja, no “mundo trotskista” influenciado pelo mandelismo e pelo morenismo). Isso nos fez não perceber o peso da definição de capitalismo de Estado no mundo anglo-saxão (influenciado pelo cliffismo e pelo schachmanismo).

[17] A transição é formação econômico-social em todos os casos, não um novo modo de produção. Se fosse um novo modo de produção, deveria dar origem a uma nova lei, uma nova cultura, etc., todas as definições contra as quais o bolchevismo se posicionou em sua época revolucionária (veja alguns dos brilhantes capítulos de Trotsky sobre o assunto em suas várias coleções de Literatura e Revolução; os mais brilhantes, “Cultura Proletária e Arte Proletária”, “Arte Revolucionária e Arte Socialista”). Transição é formação econômico-social, comunismo é um novo sistema: “(…) essencialmente, a ditadura do proletariado não é a organização econômica e cultural de uma nova sociedade, mas um regime militar revolucionário em luta para estabelecer essa organização” (Trotsky, 2004: 126).

[18] Nicolas aponta que não dizemos nada em nosso trabalho sobre os “restos proletários e comunistas” da revolução (ele supõe que seja a propriedade estatal, e isso se deve em parte ao fato de que a defendemos contra a privatização). Mas isso é relativo, além do fato de que é apenas no volume 2 que abordaremos o problema do planejamento (uma prévia disso pode ser vista em “El debate sobre la economía planificada”, izquierda web). Em  “Causas y consecuencias del triunfo de la URSS sobre el nazismo”, desenvolvemos o caráter progressivo do planejamento, mesmo nas mãos da burocracia, para o triunfo do Estado “soviético” sobre o hitlerismo. Acabamos de sublinhar o mesmo em nosso texto “Liberation day (¿o el día del ‘derrumbe’ del viejo orden?)”, izquierda web.

[19] Em outras palavras, a elaboração científica não avança de acordo com a lógica do “newism”, mas por meio de um estudo minucioso de nossos clássicos em correlação com os desenvolvimentos da realidade (“El debate sobre la planificación”, izquierda web).

Também criticamos a lógica do “newism” quando tratamos do futurismo italiano em nosso texto “Ensayo de interpretación del modernismo”, izquierda web.

[20] Em suas “Cartas de Astrakhan”, Rakovsky insistiu que, como afirmou Lênin, toda declaração global é política, acrescentando que causa e consequência mudam permanentemente de lugar no processo histórico. Portanto, a inversão da causalidade que opera em sua análise entre o operário e o burocrático é compreendida: de um estado operário com deformações burocráticas, a coisa se inverte para um estado burocrático com restos (operários) da revolução (escrevemos uma longa nota sobre isso há uma década e meia, mas parece que ela não está digitalizada nem conseguimos encontrar o arquivo agora, ao trabalhar nesta intervenção oral). “Las ‘Cartas de Astrakán’ de Christian Rakovsky’”, Revista Socialismo o Barbarie 21, novembro de 2007.

[21] A variante autonomista é a outra crítica do bolchevismo ao lado da crítica kautskyana (elas até pisam um pouco nos pés uma da outra): o que os bolcheviques fizeram estava errado; quem os criticou estava certo; as circunstâncias da guerra civil, da novidade radical do poder proletário, tudo isso é deixado de fora. Na prática, que entre o governo bolchevique e o stalinismo há um fio de continuidade…

Transcrição e edição deste artigo em espanhol (original): Patricia López

Imagem de capa:  “Quadrados com círculos concêntricos”, 1913 de Wassily Kandinsky

Tradução: Mariah Sinem do original Materialismo histórico y transición socialista (parte 1)

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