Traducción de Esquerda Web
Em “Trabalho e ‘autoexploração’ na transição”, um dos rascunhos do Tomo II da obra O marxismo e a transição socialista: Planificação, mercado e democracia socialista, Roberto Sáenz discute os dilemas da economia de transição socialista, situando-a não como um modo de produção acabado, mas como uma formação social que combina elementos herdados do capitalismo (mercado, lei do valor, trabalho assalariado) com tendências do futuro comunista (planificação democrática, democracia socialista).
Neste processo de transição, as categorias socioeconômicas tornam-se hibridas, assim, a lei do valor (categoria central na formação capitalista) não desaparece de imediato após a expropriação da burguesia, mas subsiste de forma mediada pelo Estado operário – ou burocrático, a depender da correlação de forças internacional e nacional – e pelo desenvolvimento das forças produtivas que tem que ter na superação do trabalho estranhado um fator decisivo.
A subsistência efetiva do valor e sua lei que impõe a necessidade de medições de produtividade, tempo de trabalho e custos para racionalizar a economia. Se essa mediação é feita por um Estado operário de fato, no qual a classe operária com os seus organismos políticos exerce o poder de cima a baixo da sociedade, a lei do valor tende a desaparecer e o Estado a ser superado, se o contrário acontecer, a mediação entre plano e mercado (troca entre valores iguais) não contar com a democracia operária, o desenvolvimento das forças produtivas e, assim, com a superação do trabalho direto, a lei do valor tende a se manter, como ocorreu em todas as experiências do século XX em que a classe operária foi alijada do poder.
A “cozinha” deste processo é o processo de auto exploração após a expropriação da burguesia. Se nesse processo, o trabalho excedente pode ser dedica à acumulação socialista ou a acumulação burocrática, a depender do controle ou não da classe operária do plano e da sua elevação progressiva ao fazer politico-administrativo da sociedade como um todo. Caso contrário, o trabalho excedente se consolida na mão de uma classe política que, a partir do seu poder de mando, passa a se apropriar cada vez mais do excedente. Exemplos históricos da URSS, de Cuba e da China ilustram tanto os ensaios voluntaristas e administrativos quanto os fracassos e distorções burocráticas.
Sáenz em seu “borrador” sublinha que a economia de transição é intrinsecamente uma economia político-social, pois a separação entre economia e política própria do capitalismo deixa de existir. Planificação, mercado e democracia operária se combinam como reguladores necessários para que se possa garantir aumento da produtividade, racionalidade e apropriação operária do excedente e superação entre trabalho direito e indireto. A superação da produção mercantil e do próprio Estado é processo de reabsorção histórica do estado pela sociedade e superação das desigualdades sociais e humanas, que só pode ser garantido pela ampliação da democracia socialista, pelo controle operário e pela extensão internacional da revolução. A transição, é um campo de luta de classes – entre a classe operária e todo o passado – cujo desfecho depende tanto do desenvolvimento das forças produtivas quanto da ação consciente da classe operária e de sua vanguarda organizada de forma democrática nos organismos de poder e partidos revolucionários.
Redação
Trabalho e “autoexploração” na transição
Rascunho de trabalho para o tomo 2 de O marxismo e a transição socialista: Planificação, mercado e democracia socialista.
“O trabalho comunista, no sentido mais limitado e estrito da palavra, é um trabalho levado adiante de maneira gratuita para o benefício da sociedade: trabalho realizado não como uma obrigação determinada, não com o propósito de obter o direito a certos produtos, não de acordo com taxas fixadas de maneira legal e previamente estabelecidas, mas trabalho voluntário, sem levar em conta as taxas, trabalho levado adiante sem expectativa de retribuição, sem a condição de retribuição, trabalho levado adiante sob o hábito do trabalho para o bem comum e sob uma realização consciente (algo que se transforma em hábito), a necessidade de trabalhar para o bem comum — trabalho sob os requerimentos de um corpo são”
(Lênin, “From the destruction of the ancient social sistem to the creation of the new”, 1920).
“Ao fim e ao cabo, a fórmula segundo a qual «a classe operária não pode explorar a si mesma» é um sofisma destinado a obscurecer os fenômenos da espoliação inevitáveis em uma sociedade de transição e que, se eles não são esclarecidos pelo que são, eternizam as relações de desigualdade que podem perfeitamente, a longo prazo, reconstituir as relações de exploração entre classes de um novo gênero. Não há nada de impossível nisso”
(Naville, 1970: 119)
A forma assalariada do trabalho subsiste na economia de transição ao menos nos países atrasados ou dependentes, ou não? A seguir, dedicar-nos-emos a tentar explicar por que a lei do valor subsiste inevitavelmente como um dos reguladores da economia de transição nas condições de baixo desenvolvimento das forças produtivas. Subsistência que é regulada e mediatizada, mas não arbitrariamente desconsiderada, por meio da planificação socialista.
1- As “relações de produção” transitórias como categorias econômico-políticas
Como a palavra «transitória» indica, e como escrevemos em nosso tomo 1, não nos encontramos diante de um modo de produção acabado como poderiam ser o capitalismo ou o socialismo-comunismo (esta simples definição é do próprio Trotsky, e antes dele, de Marx), mas diante de uma formação social em fluxo, em desenvolvimento, diante do processamento econômico, político e social de uma transição de um modo de produção a outro, razão pela qual a economia da transição combina leis herdadas do capitalismo com outras que antecipam o futuro socialista-comunista.
Essas leis são outros tantos «reguladores» da economia de transição ou planificada que, além do mais, nada mais fazem do que traduzir, em sua operatividade, por assim dizer, a forma concreta que assumem as relações de produção na transição socialista. Essa forma concreta não é uma relação estritamente econômica como ocorre sob o capitalismo: a estrita relação capital-trabalho (como pensam os que consideram capitalismo de Estado as formações não capitalistas); adquire maior complexidade. Ocorre que se trata da combinação entre a subsistente lei do valor (lei da troca de valores iguais), a planificação democrática da economia e a democracia socialista ou ditadura do proletariado. Ou seja, um híbrido de relações econômico-políticas, a “unicidade” própria da transição, o que não quer dizer perda de especificidade nem de determinações, como veremos.[1]
Como escrevemos no tomo 1 de nossa obra, não se trata na transição de uma mera economia: a separação entre economia e política própria do capitalismo se encerra na transição socialista, e, se bem que a relação entre a humanidade e a natureza seja irredutível (a relação metabólica entre ambas, mensurável no desenvolvimento das forças produtivas ou destrutivas)[2], no que se considera habitualmente as «relações de produção» entram em jogo elementos que não são os próprios do capitalismo (não se trata de relações econômicas no sentido lato do termo).
A própria relação de produção na transição não é uma relação da esfera estrita da economia, porque com a expropriação-estatização dos principais ramos da produção ingressa pela porta da frente a necessidade da planificação econômica. Mas a questão é que a planificação tem necessariamente um nível de centralização, ainda que se combine com elementos descentralizados de autogestão ou outras formas de direção operária no nível dos locais de trabalho; então, ao colocar-se no terreno da totalização das relações sociais, isto é, do semi-Estado proletário, adquire uma dimensão imediatamente econômico-política. E, evidentemente, essa dimensão econômico-política que a planificação adquire remete a quem decide as opções de política econômica, o que remete, por sua vez, à democracia socialista, uma instância “estritamente” política.
Posto isso, a economia planificada tem uma dimensão irredutivelmente política. Simultaneamente, por ser uma economia, tem em primeiro lugar uma dimensão irredutivelmente econômica — só a relação material humanidade-natureza produz valores de uso; Pierre Naville estabelece bem essa delimitação e suas combinações. E o fato é que neste terreno não se podem abolir como «por um gesto» as categorias da economia política herdadas do capitalismo. Categorias que se fundam em uma determinada circunstância material na qual a criação da riqueza ainda depende, em grande medida, do suor humano e da repartição desse suor humano. Uma extorsão dos nervos e músculos das e dos trabalhadores, que, se na transição deve tender a reabsorver-se em uma produção que erradique a exploração do trabalho humano, ainda, no melhor dos casos, isto é, sob uma ditadura do proletariado autêntica, trata-se de uma circunstância de autoexploração, na medida em que ainda não se pode superar o horizonte da necessidade.
Ou seja, ainda não se está na circunstância da abundância, de uma “plétora da riqueza”, que alcançará um novo nível sob o comunismo, quando se extinguirá por completo a lei do valor, que é a lei que rege a produção de mercadorias e especificamente a produção capitalista (a forma valor da riqueza).[3] Igualmente, certo reino da necessidade seguirá existindo de maneira irredutível, ainda que sob outras formas, na medida em que a humanidade, de uma maneira ou outra, sempre dependerá da natureza.
Na transição, a produção ainda não pode ser diretamente social. Isso é assim porque subsistem duas imposições: a imposição da autoexploração que adquire a forma do subsistente trabalho assalariado (veremos adiante). E também subsiste a «forma de Estado», o que significa que o Estado, ainda que seja uma ditadura proletária, ainda que seja um Estado operário, ainda que se desenvolva sob formas soviéticas que o transformam em um semi-Estado, isto é, um Estado condenado a desaparecer, ainda não é, não pode ser por completo, uma «produção dos produtores associados», como queria Marx sob o comunismo. A subsistência do Estado introduz a necessidade de formas de democracia socialista, de formas de representação onde se expressem a vontade popular e a soberania popular. Se essas formas chegam a se afirmar e se aprofundar, a envolver camadas crescentes da população ao mesmo tempo em que as forças produtivas se desenvolvem de maneira sã, reduzir-se-ia o «piso da necessidade», o espremimento dos nervos e músculos (o crescimento do trabalho necessário sobre o trabalho excedente). Também se reduziria a produção para a troca mercantil em diferentes níveis: entre o campo e a cidade, entre o trabalhador como consumidor e o mercado, entre o Estado operário e o mercado mundial, nas relações intraempresas estatais etc. Tudo isso acabará por liquidar a produção de mercadorias, transformando-se o trabalho em diretamente social: “Em uma comunidade primitiva na qual, por exemplo, se produzam coletivamente os meios de vida e se repartam entre os membros da comunidade, o produto comum satisfaz diretamente as necessidades de cada indivíduo, de cada produtor; o caráter social do produto, do valor de uso, reside aqui em seu caráter coletivo (comunal)” (Karl Marx, Notas sobre Wagner: 33).
Ambas as reabsorções, a da produção de mercadorias e a do Estado, ainda que este seja proletário, são necessárias para uma produção diretamente social. No «entrementes», o que se tem em uma transição ao socialismo autêntica é uma produção que tende a ser diretamente social, mas que ainda não o é por completo e expressa uma combinação dialética de três “reguladores”: a planificação, o mercado e a democracia socialista.
As citações de Marx e Lênin assinaladas acima funcionam como “conceito regulador” rumo a uma economia socialista e comunista que ainda não o é. A economia de transição corresponde exatamente a uma economia que tende a uma produção diretamente social, no caso de uma transição autenticamente socialista, mas que ainda não chegou a esse estágio. Se a economia transitória já não está regida pelo mercado, tampouco se trata de uma economia diretamente socializada. Pelo contrário, a economia planificada (é evidente que nesta parte de nossa obra tratamos o conceito de economia planificada e economia transitória como sinônimos, ainda que não o sejam exatamente) combina dialeticamente as leis herdadas do passado capitalista (a lei do valor-trabalho) e as leis tendenciais vinculadas ao futuro comunista: a planificação econômica e a democracia socialista.
Esse caráter ainda não totalmente diretamente social da produção na transição, seu caráter ainda indireto, embora com tendência a deixar de sê-lo, provém de que, se bem a produção já não é diretamente de mercadorias, tampouco é diretamente social, isto é, uma produção coletiva de valores de uso, um trabalho, como assinala Lênin, “pelo bem comum”.
Isso é assim porque a lei do valor (a lei de produção e troca de valores iguais) segue presente na troca entre a força de trabalho (que segue sendo mercadoria na transição, trabalho assalariado) e o Estado, na compra privada de bens no mercado, nas relações entre o campo e a cidade no caso de sociedades multitudinárias como seguem sendo a Índia ou a China, apesar de seus altos níveis de urbanização, e nas trocas internacionais. Em todos esses casos segue havendo troca de mercadorias; inclusive a há em muitas das trocas intraempresas estatizadas, assim como nos quase-mercados que essas trocas configuram (o conceito é de Pierre Naville), e no mercado negro (verificada sua existência em todas as sociedades não capitalistas do século passado e até hoje em Cuba).
A produção na transição não é diretamente social porque é, além disso, uma produção necessariamente mediada pelo Estado, que, ainda que seja proletário, ainda não é a reabsorção do Estado na sociedade, condição para uma produção diretamente socializada. Há uma confusão conselhista-autonomista que crê que a autogestão nos locais de trabalho é, por si mesma, uma produção diretamente social, mas isso é equivocado. Se a tendência deve ser a essa “autogestão”, isto é, à capacidade operária de gerir os locais de trabalho, não se deve perder de vista que a gestão “cooperativa” não substitui a necessidade da planificação centralizada; se não há centralização, o que se tem são unidades de produção separadas mediadas pelo mercado. A complexidade da circunstância — além das tensões regionalistas e localistas que nesses casos surgem — coloca como estrategicamente imprescindíveis as formas políticas soviéticas, a irredutibilidade da política, da generalização dos interesses de classe. Daí que o próprio semi-Estado proletário, a ditadura proletária, seja imprescindível na transição (tanto em sua forma de ditadura proletária sobre as classes inimigas como de democracia socialista em relação ao autogoverno das e dos trabalhadores); também é imprescindível que esse semi-Estado tenha a tendência à desaparição-dissolução-sobreposição com a sociedade auto-organizada (o Estado desaparece, a política não: não se passa à mera administração das coisas como acreditava Engels, ver O marxismo e a transição socialista, tomo 1).
Como digressão, sublinhemos que as abordagens vulgares que afirmam que seria preciso “descartar” toda a experiência bolchevique são de um simplismo espantoso: a transição socialista autêntica, para não falar de sua degeneração, é de uma complexidade e densidade histórica que não admite os esquemas simplistas do Estado operário eterno nem do capitalismo de Estado vulgarizador do processo. Um Estado operário deixa de sê-lo se a classe operária fica fora do poder do Estado, pela simples razão de que os meios de produção estão estatizados e ficam nas mãos de uma burocracia. Por outro lado, a ideia de que o ex-Estado proletário se transforma em “capitalista coletivo”, convertendo a sociedade em um capitalismo de Estado, avilta a complexidade do processo histórico de transição ou sua inibição e simplifica relações de produção que não são idênticas às do capitalismo. O conceito de capitalismo de Estado não pode explicar nada do que realmente ocorreu na ex-URSS, recorre apenas a abstrações, simplesmente porque perde de vista a especificidade e a complexidade do processo de transição de um modo de produção capitalista a um socialista e comunista. Perde de vista também que a transição socialista é uma formação econômico-social e não um modo de produção consolidado (ver nossa crítica ao marxista italiano Valentino Gerratana em: “Marx, Hegel e o conceito de transição”, Esquerda Web).
Voltando ao nosso argumento, o anterior é o que explica que subsistam as categorias da economia política burguesa, as categorias mercantis, ainda que estatizadas. Essa circunstância de tensão entre o passado e o futuro, esse caráter de transição desta sociedade e desta economia, é o que dá lugar às contraditórias “leis” que regem a economia planificada, sobretudo nos países “atrasados”. Leis — reguladores, antes — que não são outra coisa senão a forma concreta que adquirem as relações de produção na transição, que não têm a «simplicidade» da mera relação capital-trabalho como sob o capitalismo (ou nas teorias vulgares do capitalismo de Estado para os países não capitalistas).[4]
Tais relações de produção se expressam sob a forma da planificação, o comando centralizado da economia por parte do semi-Estado proletário, o que não elimina formas de controle operário e autogestão pela base (na realidade, como assinalamos, ambos os planos de direção da produção devem se combinar na economia de transição); a subsistência e a necessidade do mercado e da lei que o rege (veremos a seguir o alcance e os limites dessa subsistência, nacional e internacionalmente); e a democracia operária e soviética que, vista a “unicidade” entre economia e política na transição, se transforma em outra relação de produção, como assinalamos acima.
2- As relações de valor na transição
O que está colocado é apreciar as “leis” que se põem em jogo na economia transitória, leis e mecânica que são utilizadas aqui como conceitos com grande licença de significado. É que surge neste terreno um problema de vastas consequências: nossa crítica a um olhar da transição como se fosse um processo “puro”, regido exclusivamente por leis econômicas que poderiam operar espontaneamente qual lei da gravidade, por fora de uma direção crescentemente consciente da produção, ex ante e não ex post como no mercado.
Como assinalam Mészáros e também Karel Kosík, o próprio conceito de lei muda nas relações da transição, e nem se fala no comunismo, no que diz respeito à sociedade e à natureza mesma. Se nas formas pré-capitalistas e no capitalismo essas relações são para a humanidade em grande medida ou exclusivamente “objetivas”, na transição socialista e no comunismo a re-atuação consciente da humanidade em ambas as instâncias introduz outra “legalidade”: Mészáros chega a afirmar o conceito de “a lei que nos damos”, no sentido de que já não é algo que nos ocorre “objetivamente” como a quem de repente atropela um bonde (um carro sem motorista na modernidade moderníssima e antimoderna do século XXI!), mas uma apreciação ex ante, consciente, de nossas relações econômicas e sociais, que não podem declarar abolidas as relações materiais, e sim funcionar segundo o apotegma de Engels: podemos controlar a natureza (e a sociedade, acrescentamos nós) porque conhecemos suas leis. Mas se isso é assim na transição e no comunismo, o próprio conceito de lei muda, e vai-se a uma combinação mais refinada entre seus elementos objetivos e subjetivos, ainda que a objetividade sempre prevaleça em última instância (não se trata de cair em um solipsismo à la Fichte!).
Recordemos que, quando Mészáros fala de “a lei que nos damos”, Kosík fala do “ponto de inversão no qual o subjetivo se transforma em objetivo” (O marxismo e a transição socialista, tomo 1, e “O marxismo como filosofia política”). No mesmo sentido, em nossa apresentação de O marxismo e a transição socialista na Feira do Livro de 2025, dizíamos: “A mecânica do capitalismo clássico é a mecânica da economia de mercado, dos mercados autorregulados (Polanyi); na mecânica da transição socialista, a economia não caminha sozinha. No desenvolvimento histórico, a humanidade aparece como puro objeto, as coisas «nos acontecem»; a transição ao socialismo requer outro protagonismo, consciente, dos explorados e oprimidos: as coisas não podem simplesmente «nos ocorrer», a transição ao socialismo exige que as coisas ocorram mais ou menos como nós prevemos”.
De um ponto de vista oposto, da combinação de elementos conscientes e “espontâneos”, o nó teórico da questão passa pela relação dialética que se estabelece entre os três elementos que regulam a economia na transição (além de sua relação geral com o Estado proletário, a dinâmica da revolução internacional e a transformação socialista no próprio país da revolução: todos esses elementos estão inter-relacionados para apreciar a dinâmica das coisas; figuram tal qual no texto escrito de A revolução permanente de Trotsky)[5]: a planificação, o mercado e a democracia soviética.
Nossa primeira tarefa é, então, ir especificamente ao problema dos alcances e dos limites da lei do valor na transição. A questão é complexa, matéria de polêmica entre economistas marxistas até hoje: há quem negue essa subsistência, há quem a hipostatize. Os extremos sempre foram a adaptação oportunista às leis de mercado (a “escola” de Bujarin) ou sua negação idealista na transição. Mandel é um bom exemplo disso último em sua obra, salvo em O poder e o dinheiro, a última dedicada à URSS. Assinalamos em outros textos que a abordagem do economista belga da economia da transição era uma espécie de símile quase acrítico das posições de Preobrajensky em sua obra clássica A nova economia, de 1926 (ver nossa crítica inicial a esse respeito em “Trotsky, Preobrajensky e Gramsci e os problemas da planificação”, Esquerda Web.)
Nesta obra sustentamos que a lei do valor inevitavelmente se mantém até certo ponto nas economias de transição, ao menos nos países que não são do centro imperialista (quando ocorrer uma revolução socialista em um país avançado, ver-se-á).[6] Obscurecer esse fato não faz nenhum favor ao processo de socialização da produção, que deve tender a reduzir sua incidência partindo de entender as razões de sua subsistência, que primordialmente são a subsistência de um mercado mundial capitalista dominante e o atraso relativo das forças produtivas no país da revolução.[7]
Tal permanência se deve a várias razões. A principal, acabamos de assinalar, é a subsistência do mercado mundial: a necessidade, em todo Estado operário, de manter e inclusive aumentar as trocas econômicas com o mercado mundial, o que, é evidente, obriga o Estado operário a “medir-se” de certa forma com ele. Porque uma economia de transição em desenvolvimento necessita das maiores trocas possíveis com o mercado internacional. Um ângulo claro contra o nacionalismo econômico e a autarquia; um ângulo internacionalista que não elimina, por outro lado, os inevitáveis critérios de protecionismo socialista (veremos adiante).
Há também a circunstância de que a totalidade das revoluções anticapitalistas até o momento — que são as do século XX — teve lugar em países atrasados, razão pela qual sua racionalização econômica — violentada pelo stalinismo em sua lógica do “terceiro período” — não deveria ter prescindido da medida do valor, isto é, da comparação dos preços internos e da qualidade com os do mercado mundial. A produção em qualquer Estado operário do futuro que não seja do centro imperialista não necessariamente deverá ajustar-se aos preços do mercado mundial; é inevitável alguma forma de protecionismo econômico para que progridam os ramos econômicos imprescindíveis para um desenvolvimento econômico independente, ainda que sejam menos produtivos. No entanto, um dos mecanismos de controle e regulação da racionalidade da produção será não perder de vista essa análise comparada.
Trotsky insistia que, como correlato da necessária subsistência do dinheiro na economia planificada de transição — não como instrumento de acumulação privada, como capital, mas sim como medida do valor das mercadorias —, a moeda estável é uma forma inescapável de racionalização econômica: não há outra maneira de medir objetivamente a produtividade da economia transitória, mesmo se conscientemente se decide produzir estrategicamente bens industriais ou de tecnologia avançada a custos maiores que a média mundial.
Isso se soma ao fato de que as relações de valor subsistem, em primeiro lugar, na medida em que subsiste o trabalho assalariado. Subsiste uma relação social de produção herdada do capitalismo e que ainda não é, não pode ser, o trabalho pelo “bem comum”, o “trabalho comunista” de que fala Lênin. Subsistem assim o trabalho necessário e o trabalho excedente, a economia medida pelo tempo de trabalho que se utiliza para a produção, tal como Marx colocou classicamente em sua Crítica do Programa de Gotha e retomaram Trotsky em seus textos dos anos 1930 e Naville em seu Le Noveau Leviathan: “(…) «todos os membros da sociedade» e o «direito igual» evidentemente não são mais que simples modos de falar. O essencial consiste em que nessa sociedade comunista cada trabalhador deve receber, à maneira lassalleana, «íntegro» o «produto do trabalho».
”Se considerarmos primeiramente o «produto do trabalho», no sentido material do trabalho, então o produto do trabalho da comunidade é a totalidade do produto social.
”Disso há que deduzir:
”Primeiro: A parte destinada a repor os meios de produção consumidos.
”Segundo: Outra fração adicional para ampliar a produção.
”Terceiro: Um fundo de reserva ou de seguro para cobrir os riscos por acidentes, as perturbações ocasionadas por fenômenos naturais etc.
”Essas deduções do «produto íntegro do trabalho» são uma necessidade econômica e sua magnitude se determina de acordo com os meios e forças existentes, em parte mediante um cálculo de probabilidades [Marx era um gênio: já apreciava, como assinalaria posteriormente Trotsky com base na experiência, que o plano era prova e erro e por isso mesmo devia ser corrigido no momento de sua aplicação]; mas em nenhum caso são calculáveis equitativamente.
”Resta a outra parte do produto total destinada precisamente a servir como meio de consumo.
”Mas antes de proceder à partilha individual é preciso deduzir:
”Primeiro: As despesas gerais da administração, que não pertencem à produção.
”Essa parte, comparativamente ao que é na sociedade atual, fica reduzida em importância e vai diminuindo à medida que se desenvolve a sociedade nova [sempre e quando, acrescentamos nós à luz da experiência do século passado, o semi-Estado tenda a reabsorver-se na sociedade como deveria ocorrer em uma transição autêntica, e não a transformar-se em um novo Leviatã, como ocorreu nos Estados burocráticos, algo que Marx não podia prever!].
”Segundo: A parte destinada a satisfazer as necessidades coletivas, por exemplo, escolas, instituições sanitárias etc. [que são outras formas de salário indireto sempre que sejam instituições públicas, acrescentamos nós].
”Comparativamente ao que sucede na sociedade atual, essa fração aumenta imediatamente em importância e sua magnitude cresce à medida que se desenvolve a sociedade nova [outra vez, a experiência histórica “nos fala”: essa dinâmica é a oposta à que ocorreu sob o stalinismo, que levou adiante uma acumulação de Estado e não uma acumulação socialista].
”Terceiro: Os fundos necessários para o sustento dos incapacitados para o trabalho etc., isto é, a parte que corresponde à assistência oficial aos pobres.
”Chegamos agora à «distribuição» que, sob a influência de Lassalle e com critério estreito, levou em conta o programa [que estamos criticando], isto é, a porção dos meios de consumo que se repartem entre os produtores individuais da coletividade.
”O «produto íntegro do trabalho» já se transformou em nossas mãos em «produto parcial», embora a parte que se tira do produtor em sua condição de indivíduo ele a recupere direta ou indiretamente, em qualidade de membro da sociedade” (Marx, 1972: 28/9).
Como se aprecia com Marx, subsiste ainda na transição a medida do valor-trabalho e, por consequência lógica, o trabalho necessário e o trabalho excedente, só que em uma transição socialista autêntica uma porção considerável deste último deveria retornar de maneira “direta” ao produtor em sua condição de indivíduo em “qualidade de membro da sociedade” e outra indiretamente se a acumulação for realmente socialista: isto é, em benefício direto ou mediato da classe trabalhadora e não de uma burocracia usurpadora. Tudo o que demonstra algo sobre o qual retornaremos abaixo: que todas as categorias da economia política, em primeiro lugar a do trabalho assalariado e a própria mais-valia, são estatizadas quando a burguesia é expropriada, mas ainda não podem ser abolidas (Marx, Trotsky e o amigo Naville).[8]
O anterior demonstra que a base de valor da economia não desaparece magicamente porque os capitalistas foram expropriados. O que quer dizer a “base de valor da economia”? Quer dizer duas coisas: a) que o trabalho humano continua sendo direta ou indiretamente a base material da produção junto com a natureza, e b) que a única forma de medir de maneira homogênea essa base de valor da produção é o tempo de trabalho, o tempo utilizado para a produção. Isso último sucede ainda que se utilize mais trabalho que o socialmente determinado em nível internacional para certo ramo da produção porque é necessário desenvolver a indústria no país da revolução — sempre dentro de certos parâmetros de racionalidade nas proporções entre ramos da economia, na qualidade e na quantidade das mercadorias produzidas.
Faz falta um padrão comum para racionalizar a economia na transição socialista, estabelecer algum parâmetro objetivo que tenha o peso da “estatística” em toda a economia. Na URSS, sobretudo sob o stalinismo, utilizou-se qualquer outra proporção de medida, como a quantidade produzida fisicamente ou o peso dos produtos, todas medidas irracionais não só pela arbitrariedade administrativa e burocrática com que se estabeleceram, mas porque é muito difícil, senão impossível, passar na transição a outra unidade de medida que não seja o valor expresso em dinheiro. Alec Nove, economista socialista reformista, desenvolve bem essa problemática que abordaremos mais em profundidade à medida que avancemos nesta segunda seção do tomo 2 de nossa obra.
Há que recordar que estamos falando de uma economia. Ou seja, de uma esfera na qual se devem apreciar custos e “benefícios”; não se pode produzir sistematicamente com prejuízo, embora não estejamos falando de um lucro de tipo capitalista (Lênin criticará expressamente isso ao Bujarin esquerdista dos primeiros anos da revolução).[9] E a dialética entre quantidade e qualidade de produtos também importa (Rakovsky). Afirma Trotsky: “É necessário que cada fábrica de propriedade estatal, com seu diretor técnico, não somente esteja sujeita ao controle de cima (…) mas também de baixo, pelo mercado, que seguirá sendo durante muito tempo o regulador da economia estatal. O plano é comprovado e em boa medida realizado por meio do mercado. A regulação do mercado deve basear-se nas tendências que nele se manifestam; deve provar sua racionalidade econômica por meio do cálculo comercial. A economia do período de transição é inconcebível sem o «controle do rublo»” (Trotsky citado por Alec Nove em A economia do socialismo factível, 1987: 92/93).
Expliquemos um pouco a citação antes de continuar. Primeiro, Trotsky apresenta o mercado como regulador da economia estatal na medida em que é no mercado que os consumidores (não importa que sejam da seção I ou da seção II) devem convalidar preço, quantidade e qualidade dos produtos. Segundo, o cálculo comercial refere-se ao que acabamos de assinalar: não à ideia de que a produção persegue o lucro como objetivo em si mesmo, como sob o capitalismo, mas ao conceito de que a produção não pode fazer-se sistematicamente em um marco de desproporções entre os custos e os resultados (“benefícios”): não se pode desperdiçar o trabalho humano nem os recursos naturais (ensinamento este último redobrado pela justa preocupação ecológica do século XXI e pela crítica marxista ao produtivismo).[10] Terceiro, quando se fala do “controle do rublo” fala-se de uma unidade de medida estável, da crítica marxista da inflação como fator de distorção econômica.
3- “Exploração mútua”
Apresenta-se, então, uma problemática fundamental que não havia sido tomada em consideração nos debates da esquerda revolucionária no pós-guerra, que tem sido negada, escamoteada: o necessário caráter de mercadoria que conservam na transição a força de trabalho e os bens de consumo, mercadorias que se atribuem majoritariamente pelo mercado inclusive depois da expropriação dos capitalistas. Nos países onde o capitalismo foi expropriado, a força de trabalho manteve o caráter de uma mercadoria intercambiável por um salário na medida em que o piso baixo no desenvolvimento das forças produtivas impunha uma racionalização do trabalho segundo o valor produzido.
É real que durante o período do “comunismo de guerra” na URSS (1918-1920), assim como em outros casos onde o capitalismo foi expropriado (China, Cuba), houve ensaios nos quais o critério principal de apreciação da força de trabalho foi administrativo (não assalariado). Pelo lado negativo, o caso extremo dos trabalhos forçados no gulag e empreendimentos voluntaristas como as grandes safras em Cuba no início dos anos 1970, ou o “Grande Salto Adiante” na China no final dos anos 1950. Pelo lado positivo, o caso dos “sábados comunistas” no começo da Revolução Russa, aos quais só comparecia uma vanguarda, casos ilustrativos de uma atribuição de “salário” não mercantil. Mas, para além de uma vanguarda “politicamente incentivada” (no caso burocrático-voluntarista do Che, o incentivo era “moral”), ou de uma atribuição arbitrária puramente administrativa duplamente exploradora, não deixa de ter como pano de fundo — por ação ou “omissão” — as leis do valor-trabalho. Isso ocorre ainda que tais “leis” estejam completamente deformadas, aviltando inclusive a forma “livre” do trabalho assalariado capitalista. O resultado foi que esses ensaios fracassaram rotundamente ou deram lugar a experiências de exploração operária aberta e brutal como o stakhanovismo (dedicar-nos-emos a essa experiência em um capítulo específico de nosso tomo 2). Trotsky insistiu várias vezes em que uma satisfação do trabalho puramente extraeconômica só poderia abranger uma vanguarda politizada, e sob condições de democracia socialista (do político ao abstratamente moral há um longo caminho de descontinuidade que abordaremos especificamente quando nos dedicarmos ao conhecido debate sobre a planificação em Cuba nos anos 1960).
Sendo um fato a subsistência da forma salarial, isto é, a subsistência de trabalho necessário e trabalho excedente sobre a base do valor (do valor-trabalho), uma problemática que se coloca imediatamente é quem decide e para que fins se utiliza o trabalho não pago. Se redunda em uma acumulação a serviço de uma classe operária que controla esse excedente, como assinala Marx em sua Crítica do Programa de Gotha, estamos diante de uma acumulação socialista baseada em mecanismos de “autoexploração”, a caminho de liquidar toda exploração do trabalho, de reabsorvê-la ao compasso da revolução mundial, do desenvolvimento das forças produtivas e da dissolução do Estado, da extinção das categorias da economia política como categorias do mercado ou estatizadas. Se, pelo contrário, transforma-se de fato em uma “acumulação de Estado” a serviço de uma burocracia completamente autonomizada da classe operária, uma “classe política”, como vimos, encontramos-nos diante de um fenômeno socioeconômico de outra natureza: a retomada das relações de exploração do trabalho, ainda que sob formas não orgânicas, não consagradas juridicamente, mascaradas no galimatias ao estilo stalinista do “trabalho puro” ou em formulações naturalistas do mesmo tipo (uma espécie de “trabalho” que não teria determinações sociais).
E é preciso sublinhar que as situações de fato são características das situações transitórias, onde ainda não se conformou um “sistema”. Seria impossível conceber qualquer transição sem esse tipo de “situações transitórias”, que aludem mais a uma formação econômico-social em fluxo do que a um modo de produção consolidado (o comunismo). Exigir mecanicamente que a transição seja um “modo de produção” é pedir às circunstâncias em questão que sejam uma espécie de “todo orgânico” onde cada peça está em seu lugar, em vez do que realmente são: uma combinação de leis do passado capitalista com as tendências em obra, com a “legalidade” do futuro socialista e comunista: “O gênio de Lênin é ter vinculado as necessidades táticas com as estratégicas (…) Uma primeira forma de «injustiça» desaparecerá, mas restam outras [como vimos com Marx]. O direito burguês subsiste em «qualidade de regulador» (fator determinante) da repartição dos produtos e da repartição do trabalho entre os membros da sociedade (isto é, como valor)” (Naville, 1970: 108/9).
E Naville insiste em que, para Lênin, a democracia socialista, que é antes de tudo competição de ideias, eleição pública de opções, livre discussão, é a que deve garantir a repartição do plustrabalho igual para todos, isto é, dentro do marco de uma desigualdade de rendas proporcionada pelo trabalho realizado. Recordemos que em Marx, na primeira etapa da transição ainda se está sob a injustiça do direito igual, uma medida igual para pessoas desiguais: “de cada qual segundo sua capacidade; a cada qual segundo seu trabalho”, o que no comunismo se transformará na fórmula: “de cada qual, segundo sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades” (isto é, passa-se do direito igual ao “direito” desigual, O marxismo e a transição socialista, tomo 1).
Se o principal “fator da produção” continua sendo uma mercadoria, a priori força de trabalho intercambiável por um salário — ainda que, por meio do aumento salarial direto (redução da mais-valia absoluta) e do salário indireto em moradia, educação, saúde, lazer, isto é, por meio do melhoramento geral das condições de vida, devesse superar-se o pagamento meramente salarial da força de trabalho —, não há como supor que a lei do valor, a produção de valor-trabalho, não siga regendo ao menos até certo ponto a economia de transição.
Questão central aqui, logicamente, é que as deduções do trabalho imediato para sustentar a reprodução social em saúde, educação, sustento dos que não podem trabalhar, gastos da administração etc., não reduzam ao mínimo o valor da força de trabalho, seu valor de reprodução, mas, ao contrário, permitam que os trabalhadores e trabalhadoras aumentem constantemente seu nível de vida. Isto é, que o trabalho necessário se vingue sobre o trabalho excedente; uma dinâmica oposta à ocorrida sob os Estados burocráticos.
Obscurecer essa base de valor da economia transitória, uma produção baseada ainda no espremimento da força de trabalho, significa negar as imposições que seguem regendo sobre o trabalho como produto de sua limitada emancipação inclusive em uma transição socialista autêntica, circunstância mais “formal” que real dado o atraso das forças produtivas, e nem falar na ausência de democracia socialista, de ditadura proletária, onde se transforma, lisa e simplesmente, no relançamento da exploração do trabalho alheio. Os problemas da geração e administração do trabalho não pago, do plustrabalho, do excedente, requerem a ditadura proletária: que a economia esteja realmente nas mãos da classe operária.
Afirma agudamente Pierre Naville (pedimos perdão ao leitor pela extensão da citação): “Formalmente, os produtores dominantes e a burguesia dominante se encontram em uma mesma situação: nem uns nem outros podem explorar a si mesmos. Mas isso é assim por razões inteiramente diferentes. O conteúdo da dominação, sobretudo do ponto de vista econômico, não é o mesmo. No caso da burguesia, ela não pode explorar a si mesma porque vive da exploração dos produtores assalariados. No caso dos produtores [as e os trabalhadores], eles não podem explorar a si mesmos porque não existe mais uma classe antagônica a explorar e porque todos os ganhos provêm de si mesmos (…) [Subsiste assim uma base material] fundamental da exploração. Mas existe outra análise formal: é o fato de que subsiste uma exploração derivada, que está vinculada às formas de repartição da mais-valia e dos lucros. Para o capitalista, essa repartição se realiza em concorrência e fundada no mercado livre, ainda que este esteja dominado pelos monopólios. Para a classe operária organizada em poder dominante, essa repartição, essa distribuição, é planificada, não está regida pela concorrência, mas isso não comporta menos contradições, rivalidades, conflitos e desigualdades: é aqui que se encontra a fonte das espoliações burocráticas; e isso é em geral possível porque existe na classe dos trabalhadores assalariados um princípio de «exploração mútua» manifestado pelo novo jogo da lei do valor” (Naville, 1970: 118).
E isso remete, em definitiva, a algo que retomaremos abaixo, assinalado por Trotsky e perdido nas abordagens “esquerdistas-burocráticas” da economia de transição: o fato de que a medida material, real, da transformação das relações de produção é dada inescapavelmente — embora não automaticamente — pelo desenvolvimento das forças produtivas (não automaticamente, porque a experiência foi que a burocracia stalinista desenvolveu de maneira distorcida as forças produtivas — ainda que tenha destruído muitas outras! — sobre a base da superexploração da classe operária e do campesinato).
A burguesia foi expropriada. E isso, a priori, possibilita a liquidação da exploração do trabalho alheio. Mas se a base da produção continua sendo o trabalho humano, uma base que não se pode “descontextualizar” do marco do mercado internacional ainda dominado pelas relações capitalistas, é evidente que a base de valor da economia, a lei do valor, segue regendo até certo ponto; é inevitável para apreciar os desenvolvimentos em relação ao mercado que segue sendo dominante, que é o mercado internacional. (Outra coisa muito distinta é adaptar-se mecanicamente à sua lógica, o erro oportunista em que incorreu Bujarin quando afirmou que “a economia de transição devia desenvolver-se sobre a base da lei do valor”, sic.)
Em todo caso, o anterior alude à impossibilidade de considerar o trabalho como mera relação “técnica”, carente de determinações sociais; a típica ode stalinista e social-democrata ao suposto “trabalho puro”, ao trabalho em abstrato (não confundir com a categoria de Marx de “trabalho abstrato”, que é outra questão!), como se o trabalho pudesse existir carente de determinações sociais, ou como se fosse bom em si mesmo (uma problemática sumamente importante é a delimitação entre trabalho e atividade).
Como digressão, adiantemo-nos a assinalar que a abordagem de Marx não é a de uma “ontologia do trabalho”, como lhe arremessava a liberal Hannah Arendt em A condição humana, mas sim uma perspectiva de emancipação da humanidade. Embora a humanidade deva eternamente manter relações metabólicas com a natureza, as forças produtivas postas em ação potencialmente ultrapassarão em muito a medida do trabalho e o próprio trabalho como tal, que, a nosso ver, tornar-se-á outra coisa: atividade é a palavra que mais nos convence. Palavra que não deve ser confundida com diversão ou com a ideia de que não será preciso aplicar-se duramente ao próprio “trabalho” para lograr progressos. Marx e Engels têm uma reflexão profunda sobre o trabalho humano. É o trabalho que criou o homem, afirma agudamente Engels (“O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”). No entanto, como se assinala nos Grundrisse — nisso Tony Negri é agudo —, a tendência com o desenvolvimento das forças produtivas (não as destrutivas, tão presentes neste século XXI!) é que o trabalho, tal como o conhecemos, como trabalho explorado e alienado, se torne irreconhecível e se transforme em outra coisa que preferimos chamar genericamente de “atividade” (Marx assinala que o trabalhador, de subsumido que está na produção no capitalismo, aparece “ao lado do processo produtivo como vigilante e controlador”).
Antes de prosseguir, assinalaremos sumariamente que isso supõe duas discussões: a) que nome dar ao fato de que certo “trabalho necessário” será imprescindível eternamente (a eterna relação metabólica entre a humanidade e a natureza). Aqui há um debate entre autores clássicos que refletiram sobre o tema; Alfred Schmidt tinha a posição de que o trabalho desaparecia como tal em sua obra O conceito de natureza em Marx, mas depois a variou para a consideração de que isso era impossível, de que a proporção de trabalho necessário se reduz muito, mas não pode desaparecer.
b) Aqui entra em consideração também o que se considera como trabalho. Em inglês a coisa é mais simples, porque há dois conceitos para referir-se genericamente a ele: labour e work, labour considerado como o trabalho explorado, alienado, e work como o trabalho emancipado. Marx e Engels referiram-se a isso, mas precisamente por isso nos convence mais a palavra work, atividade, para evitar uma “ontologização” do trabalho social. Em todo caso é um tema que devemos seguir estudando, tomando, entre outras, criticamente a obra de referência de Lukács, A ontologia do ser social, o que não pudemos fazer até o momento. (Em alemão, a palavra trabalho como labour traduz-se como Arbeit, trabalho no sentido comum do termo, e a palavra work, obra, atividade concreta, como Werk, obra, produto, ou como Tätigkeit, atividade, conceito que nos simpatiza muito para o que queremos assinalar.)[11]
Para que essa “exploração mútua”, esse tributo coletivo da classe operária para as gerações futuras que se expressa em destinar de seu salário uma parte para a acumulação não se transforme novamente em uma forma de exploração unilateral, essa “renúncia” deve ser consciente e não imposta de fora, daí o caráter imprescindível da democracia socialista, não só como relação política, “superestrutural”, mas como relação da própria produção.
O problema se apresenta quando essa autoexploração não significa uma acumulação a serviço do progresso geral da classe operária e de toda a sociedade, o que deve verificar-se em um aumento ainda que gradual de seu nível de vida (como assinalava corretamente a “Plataforma da Oposição Conjunta”, 1927), mas sim de uma burocracia que se empoleira acima dela, como acabou ocorrendo na ex-URSS e demais sociedades não capitalistas.
Nesse caso, a autoexploração se transforma em seu oposto: uma nova forma, por certo não orgânica, de exploração a serviço de uma burocracia, uma “classe política” que fica com a parte do leão da acumulação pela via de uma acumulação de Estado.
Referindo-se aos países do Leste europeu, Zbigniew Marcin Kowalewski assinala o seguinte: “Não somente tentaram colocar sob tutela os operários segundo o modelo stalinista, privando-os do direito à auto-organização, à greve e a toda autoatividade, como também buscaram romper toda resistência à exploração por meio de uma legislação do trabalho repressiva e uma forte pressão da chamada «massa de manobra» sob a forma de diversas categorias de trabalho não livre” (“Ouvriers et bureaucrates”, Inprecor).
Kowalewski acrescenta que “beneficiando-se largamente do fato de que a industrialização gerou elementos operários «baratos», desprovidos de raízes de classe [classicamente, os trabalhadores/as de origem camponesa estão dispostos/as a submeter-se a uma taxa de exploração média muito maior que os urbanos], a experiência soviética mostrou-se particularmente eficaz para seu recrutamento maciço nas fileiras da [própria] burocracia. Como na URSS, isso é crucial para a introdução de um «modo de exploração» dos operários de tipo stalinista” (idem). “Modo de exploração” que Kowalewski identifica como basicamente extensivo, por oposição a um intensivo que requereria o envolvimento real das e dos trabalhadores; isto é, oposto a um “modo de produção” baseado na mais-valia relativa e em um aumento real da produtividade.
4- Protecionismo socialista e acumulação
Pois bem, assim como sublinhamos o alcance da lei do valor na transição, cabe destacar seus limites. Se o Estado operário deixa simplesmente reger em forma plena o mercado, o que advém é o retorno ao capitalismo, não a acumulação socialista. Isso é assim contra o que acreditava Bujarin em sua orientação oportunista de enriquecimento ilimitado dos camponeses proprietários. Bujarin sustentava erroneamente que a lei do valor permanecia como único regulador econômico na transição, o que conduzia invariavelmente a impossibilitar a industrialização, a transformar a URSS em um país dependente. Preobrajensky, eminente economista da Oposição de Esquerda, refutará corretamente esse argumento.
Pelo contrário, promover a acumulação socialista em mãos do Estado proletário implica, precisamente, violar o império da lei do valor. Michał Kalecki, reconhecido economista marxista polonês, afirmava com agudeza que “a coisa mais estúpida que alguém pode fazer é não calcular; a segunda coisa mais estúpida que alguém pode fazer é seguir cegamente os resultados de seus próprios cálculos” (Nove, 1987: 151).
Preobrajensky tinha razão quando assinalava: “A ideia do camarada Bujarin de que inclusive a acumulação socialista não pode ser contraposta à lei do valor (…) porque nossa economia está crescendo «com base em relações de mercado», constitui um erro teórico flagrante sobre o qual se ergue um programa de oportunismo teórico e prático (…). Somos capazes de «acumular», vender nossos produtos ao dobro do valor do exterior, apenas porque erigimos uma barreira entre nosso território e o mercado mundial, que defendemos pela força” (A nova economia, 1965: 31).
Com efeito, o Estado operário deve orientar e escolher as infrações necessárias e inevitáveis à lei do valor, sob pena de que não haja acumulação socialista. Mas isso não pode ocorrer ao preço de uma queda na irracionalidade econômica, perdendo de vista as proporções econômicas necessárias entre ramos da produção e a imprescindível necessidade de relações com o mercado mundial, coisa esta última que Preobrajensky perdeu de vista quando de sua capitulação em 1929. Na realidade, as necessárias relações com o mercado mundial e a crítica à “teoria” do socialismo em um só país nunca foram um ponto forte em sua posição. Recordemos que Trotsky se queixaria em suas “Notas econômicas” de 1926 do perigo de que a teorização de Preobrajensky se transformasse em um esquema para o desenvolvimento do socialismo em um país isolado.
Não é nenhuma panaceia construir uma economia isolada ou uma mera “economia nacional” (essa era a substância do debate contra as posições do “socialismo em um só país”). Tampouco o é o “viver com o que é nosso” ou proposições desse tipo, que rebaixam a quantidade e a qualidade da economia nacional e a submetem a um isolamento retrógrado. O protecionismo socialista é uma necessidade para manter a independência nacional e lograr um desenvolvimento autônomo de forças produtivas que, no começo da revolução, estão atrás do nível de produtividade médio mundial (sempre que falemos de países atrasados em relação à média mundial). Mas é “populismo socialista” transformar essa necessidade em virtude, negar aos trabalhadores e trabalhadoras o nível de vida e as possibilidades de consumo médios mundiais — ainda sem cair no consumismo burguês —:[12] “(…) em nosso nível econômico presente, a questão do salário não deve ser estabelecida na suposição de que os trabalhadores devem primeiro incrementar a produtividade do trabalho para depois aumentar os salários; o contrário deve ser a regra, isto é, incrementar os salários, não importa quão modestamente, deve ser o pré-requisito para incrementar a produtividade do trabalho” (Cliff, 1991, capítulo 7, sem número de página).[13]
Prosseguindo com Trotsky, este assinala: “O monopólio do comércio exterior é um fator poderoso a serviço da acumulação socialista; poderoso, porém não todo-poderoso. O monopólio do comércio exterior somente pode moderar e regular a pressão externa da lei do valor na medida em que o valor dos produtos soviéticos, ano a ano, se aproxime do valor dos produtos do mercado mundial” (“Notas sobre questões econômicas”).[14] Significa que, goste-se ou não, a pressão do mercado mundial segue presente sobre a economia de transição, a despeito do protecionismo socialista. O desenvolvimento das forças produtivas não pode ser apreciado de maneira improdutiva, de costas para a média mundial, mas sim que os próprios consumidores, isto é, a maioria da classe trabalhadora, de uma ou outra maneira, e mais em um mundo irremediavelmente globalizado, farão a comparação de quantidade e qualidade com os produtos do mercado mundial.[15]
Voltemos à inescapável necessidade de violar a lei do valor para que a transição econômica progrida. A acumulação, uma vez expropriados os capitalistas no contexto da subsistência do mercado mundial capitalista, deverá fazer-se em toda uma série de ramos que a economia do país da revolução não poderia pôr de pé se se guiasse pelos critérios de produtividade média do mercado mundial. Contudo, na expectativa da extensão da revolução a outros países (única garantia de subsistência da revolução), é imperativo pôr em marcha a economia, sob pena de morte por inanição do Estado operário. Mais ainda levando em conta o seguro isolamento a que será submetido ao menos em um primeiro momento; leva anos para que as potências imperialistas aceitem, “naturalizem”, a existência do país da revolução: o primeiro reflexo inevitável é em direção à sua destruição.
Nessas condições, a infração às leis do mercado é uma obrigação da economia transitória que responde a colocar em funcionamento mecanismos indispensáveis de protecionismo socialista: desenvolver os ramos necessários para um funcionamento o menos dependente possível. Se se permitisse o livre-comércio com o mercado internacional, os camponeses e produtores capitalistas agrários, ou qualquer produtor privado de mercadorias, inevitavelmente prefeririam exportar sua produção e importar seus consumos. E isso por razões bem concretas: com segurança, esses produtores privados obteriam melhores preços no mercado internacional do que os fixados internamente pelo Estado, além de receber pagamento em divisas e ter acesso assim a mercadorias importadas de melhor qualidade e menor preço do que no mercado nacional.
Durante os anos 1920, inclusive em vida de Lênin, uma das primeiras batalhas conjuntas que Lênin propôs a Trotsky, especificamente em 1922, foi contra o impulso de Stalin e Bujarin de eliminar o monopólio do comércio exterior, questão que não prosperou. Posteriormente, já na Oposição de Esquerda, Trotsky teve que erguer-se contra a ideia de uma miserável “economia nacional autossuficiente”, insistindo em que, conforme a economia de transição crescesse e se diversificasse, necessitaria de maiores trocas com o mercado internacional, crítica que por seu lado econômico estava associada à luta política contra a concepção nacionalista do “socialismo em um só país”: “Em seu último artigo em Bolchevik, que, devo dizê-lo, é o trabalho mais escolástico nunca aparecido da pena de Bujarin, este afirma: «a questão é em que medida podemos trabalhar rumo ao socialismo e estabelecê-lo, abstraindo isso dos fatores internacionais»” (Trotsky citado por Cliff, 1991, capítulo 7, sem página).
É evidente que quando o Estado proletário fixa os preços à produção agrária (ou pequeno-burguesa) e obriga os grandes produtores do campo a comprar produtos da indústria local, mais atrasada que a do exterior, está “explorando”, até certo ponto, esses produtores agrários: entrega-lhes menos valor em troca de mais valor em benefício da acumulação socialista.
Todo o problema da acumulação socialista em um país isolado e, ainda por cima, atrasado, é um galimatias: de onde obter os fundos de acumulação transforma-se em uma espécie de quadratura do círculo. Porque, uma vez expropriados os capitalistas no campo e na cidade, no sistema bancário e nos transportes etc., o verdadeiro ato de “acumulação primitiva”, logicamente, há que cobrar impostos ao capital subsistente, mas talvez isso não baste em um país isolado para que a acumulação prossiga. Nesse sentido, a discussão sobre a “construção do socialismo em um só país” cobra toda sua relevância em relação à necessária industrialização.
A ideia preobrajenskiana da “exploração camponesa” desencadeou grande debate nos anos 1920, com Bujarin erigindo-se em defensor dos camponeses. Trotsky não fez seu esse qualificativo, que abarca uma parte de A nova economia. Sem dúvida, produz-se uma inevitável transferência de valor entre o setor agrário e o industrial que deve ser reconhecida, ainda que talvez falar de exploração seja unilateral quando se trata de médios e pequenos produtores parcelários. Aos camponeses também devem ser prometidas melhores condições de vida e buscar que sua renúncia a uma parte da renda e do lucro agrário seja voluntária. (Trabalhamos esse tema em relação à zona núcleo do campo argentino, ultramodernizada e vantajosa do ponto de vista climático, em nosso ensaio A rebelião das 4 x 4. Para entender o campo argentino e a revolta dos patrões rurais, Esquerda Web. Nesse texto deixamos claro que a questão agrária varia demasiadamente de país para país, e que é muito distinta a circunstância quando se trata de produtores agrários atrasados daquela de modernos proprietários e produtores capitalistas do campo, como é o caso argentino.)
No caso de um Estado operário, a renda agrária pertence ao Estado porque a propriedade agrária foi estatizada, embora entregue em posse “perpétua” aos camponeses. De todo modo, para resolver esse problema é preciso avançar na socialização da produção, na coletivização agrária voluntária, e no dificílimo desapego do campesinato com a propriedade privada, salvo quando se trata da exploração comunitária da terra (as expectativas que Marx tinha acerca da comuna rural russa). O campesinato médio tem uma lógica de proprietário privado, não de proprietário coletivo como a classe operária: tratam-se de dois programas distintos, evidentemente, o de acessar a propriedade privada e o de tender a abolir todo tipo de propriedade dos meios de produção. Assim, isso remete a todo um debate específico que tratamos em nosso tomo 1 de O marxismo e a transição socialista, e ao qual voltaremos neste tomo 2, mas que aqui não podemos seguir desenvolvendo. Em todo caso, o assinalado: no capítulo VII do tomo 1, “Apontamentos metodológicos sobre a coletivização forçosa”, assim como em A rebelião das 4 x 4, deixamos estabelecidos apontamentos para pensar a relação entre a revolução socialista e a questão agrária em duas circunstâncias distintas: a do atraso em geral do campo russo e a de uma produção agrária capitalista plenamente desenvolvida no caso argentino contemporâneo.
Voltando ao que estávamos desenvolvendo, essa entrega de mais valor em troca de menos é o ponto que, a priori, corretamente sublinhava Preobrajensky, que chamou erroneamente a esse processo de “acumulação primitiva socialista” (um conceito formulado pela primeira vez por Ivan Smirnov em 1918, não só equivocado como serviu de tapa-rabos ao stalinismo para sua exploração da classe operária e do campesinato nos anos 1930). Trotsky nunca se somou a esse conceito pelos perigos políticos que implicava.[16] Perigos que supunham a ruptura da unidade operário-camponesa (smytchka), base do Estado soviético, além de justificar a superexploração operária. Pelo contrário, para sustentar economicamente essa unidade, Trotsky insistia em que era necessária a industrialização como maneira de responder às exigências de consumo do campesinato. A plataforma da Oposição Conjunta de 1927 assinalava: “O ano que acaba de passar mostrou claramente que a indústria está atrás do desenvolvimento econômico do país em seu conjunto. A nova colheita novamente nos pega curtos de reservas industriais. No entanto, o progresso rumo ao socialismo pode assegurar-se unicamente se a taxa de desenvolvimento industrial, em vez de andar atrás do movimento conjunto da economia, arrastar o restante da economia atrás de si, aproximando sistematicamente o país ao nível da tecnologia dos países capitalistas mais avançados” (Cliff, 1991, capítulo 7, sem número de página).
Ainda mais: na própria “troca desigual”, valor por valor, entre o campo e a cidade, era preciso ter cuidado para que: a) não significasse deixar de prover o primeiro, de maneira crescente, de bens industrializados, e b) ter presente que, na hora da coletivização agrária nos países onde subsiste um campesinato real de pequenos proprietários, a indústria nacionalizada deve aportar mais capital ao campo em vez de retirar mais dele. Tony Cliff oferece um argumento importante a esse respeito quando assinala que antes da coletivização agrária é preciso desenvolver a indústria e que, contra o que se supõe habitualmente, é a indústria que tem que entregar capital ao campo primeiro e não o contrário, dando a entender que Trotsky tinha essa posição: “A Plataforma da Oposição Conjunta desenvolve as políticas que Trotsky vinha sustentando desde 1922 a respeito da industrialização do país (…) Trotsky via a coletivização da agricultura na sequência da industrialização da Rússia, e não como Stalin a via, como um pré-requisito para essa industrialização (…) O ritmo inadequado do desenvolvimento industrial levou a (…) um atraso no crescimento da agricultura: apenas uma poderosa indústria socialista pode ajudar os camponeses a transformar a agricultura no sentido da coletivização” (Cliff, 1991, capítulo 10, sem número de página).
No entanto, tampouco se pode cair na posição bujarinista, oportunista, razão pela qual a questão não tem solução puramente econômica, como nenhuma das questões da economia da transição: remete ao plano político, neste caso à extensão internacional da revolução. Não por acaso Lênin e Trotsky sonhavam com a complementação entre a economia russa e a economia alemã, mais avançada evidentemente.
As “Contra-teses dos bolcheviques-leninistas sobre o trabalho nas vilas” colocavam agudamente o galimatias, a circunstância paradoxal na qual se achava a economia soviética isolada: “O mero fato da ditadura do proletariado não transforma automaticamente o capitalismo em socialismo. A ditadura do proletariado abre o período de transição do capitalismo ao socialismo [dedicado a Gerratana que não se anima a falar de «transição»!, “Marx, Hegel e o conceito de transição”, Esquerda Web] (…) Na medida em que a propriedade privada dos meios de produção, por exemplo, os implementos agrícolas e os rebanhos, estão em mãos privadas, mesmo quando a propriedade privada da terra tenha sido abolida, e o mercado livre continue existindo, do mesmo modo os fundamentos econômicos do capitalismo também continuam (…) A pequena produção produz capitalismo e burguesia, constantemente, diariamente, a todas as horas, de maneira elementar e em escala de massas” (Lênin, “Imposto em espécie”, citado pelas “Contra-teses”, 1927, Revolution’s Newsstand).[17]
Em síntese: a lei do valor deve subsistir de certo modo para racionalizar a economia de transição, mas ao mesmo tempo deve ser infringida para lograr que a acumulação socialista se inicie e se desenvolva, em correspondência com os desenvolvimentos da revolução internacional e sem perder de vista os parâmetros estabelecidos pelo mercado internacional.
Bibliografia
AA.VV., “Counter-Theses of the Bolshevik-Leninist (Opposition) on work in the Village”, from International Press Correspondense Vol. 7, número 70, 12 de dezembro, 1927, Revolution’s Newsstand, 15/03/23.
Antoine Artous, “Trotsky e a análise da URSS”, Esquerda Web.
Tony Cliff, Trotsky: fighting the rising of Stalinism bureaucracy, 1923/1927, Bookmarks, London, 1991.
– Trotky: the darker the night the brighter the star, 1927/1940, Bookmarks, London, 1993.
Peter Hudis, “Marx’s concept of the alternative to capitalism”, Historical Materialism 36, Brill, Leiden, Boston, 2012.
Ronald I. Kowalski, The Bolshevik Party in Conflict. The Left Communist Opposition of 1918, MACMILLAN, Londres, 1991.
I. Lênin, “From the destruction of the ancient social system to de creation of the new”, 1920, Revolution Newsstand, 11/07/25.
– “Caderno de Notas. O marxismo sobre o Estado”, janeiro-fevereiro de 1917, em Crítica do Programa de Gotha, Editorial Ateneo, Argentina, 1972.
Karl Marx, Notas marginais ao Tratado de Economia Política de Adolf Wagner, 1879-1880, Dos Cuadrados, Estado Espanhol, 2022.
Crítica do Programa de Gotha, Editorial Ateneo, Argentina, 1972.
Pierre Naville, Le Noveau Leviathan. Le salaire socialiste, deuxième volume, Éditions Anthropos, Paris, 1970.
Alec Nove, A economia do socialismo factível, Siglo Veintiuno Editores, Madri, 1987.
Evgeny Preobrajensky, The New Economics, Clarendon Press, Oxford, 1965.
Roberto Sáenz, A rebelião das 4 x 4, Esquerda Web.
– “Marx, Hegel e o conceito de transição”, Esquerda Web.
– O marxismo e a transição socialista, tomo 1, Esquerda Web.
Zbigniew Marcin Kowalewski, “Ouvriers et bureaucrates”, Inprecor.
[1] O conceito de “unicidade” dessas relações econômico-políticas nos foi sugerido pela resenha de nossa obra do marxista argentino-espanhol e amigo Nicolás González Varela, resenha em chave marxista-autonomista-conselhista, mas que, ainda assim, nos aporta fraternalmente elementos sugestivos. Por exemplo, a própria ideia de que nosso aporte constitui uma sorte de “meta-política da transição” capta algo profundo do sentido de nossa obra.
[2] Com István Mészáros e John Bellamy Foster ficou estabelecido entre as últimas gerações marxistas o conceito da «ruptura metabólica» entre a humanidade e a natureza que o capitalismo produz e a necessidade excludente de resolvê-la na transição socialista e no comunismo. Em relação ao stalinismo, só o primeiro apreciava como este destruiu tal relação. Foster é um pro-stalinista acrítico, ao menos quanto à China, tradição que continua as posições históricas de Paul Sweezy e Paul Baran, fundadores da revista Monthly Review. Ver Víctor Artavia, “A política (anti) ecológica na URSS”, Esquerda Web).
[3] “A particularidade do capitalismo, sustenta Marx, é que todas as relações sociais passam a ser governadas pelo objetivo de aumentar o valor, independentemente das necessidades e capacidades da humanidade. Marx trata a produção de valor não como uma lei trans-histórica da existência humana, mas como uma característica específica da sociedade capitalista. Marx estava completamente advertido de que a troca de mercadorias antecedia à existência do capitalismo. No entanto, não igualava simplesmente a produção de valor com a troca de equivalentes no mercado. Nas sociedades pré-capitalistas, argumentava, bens e serviços eram primariamente trocados com base em sua utilidade material, não com base em seu (abstrato) valor de troca” (Hudis, 2012: 7).
[4] Vistas de perto, as teorias de que a ex-URSS ter-se-ia transformado em um capitalismo de Estado na virada dos anos 1920 porque o trabalho morto dominava o trabalho vivo são uma simplificação extrema da complexidade do processo de degeneração burocrática. Voltaremos a isso em seguida.
[5] A revolução permanente é uma obra de Trotsky inicialmente concebida como polêmica com Karl Radek contra a defesa deste último da revolução por etapas. Em geral, uma obra que, bem apreciada, passou pelo crivo da história, mas que requer sua atualização a partir da degeneração stalinista e das revoluções anticapitalistas porém não socialistas da segunda pós-guerra, que Trotsky não teve oportunidade de ver (ver nosso “A teoria da revolução depois da burocratização” em A revolução permanente hoje, Esquerda Web).
[6] Já assinalamos que nossa obra está escrita desde o Sul Global e, ainda por cima, em um país em franca decadência como a Argentina, razão pela qual, embora tentemos ser cosmopolitas e a construção de nossa corrente internacional nos ajude nisso, é evidente que nossa radicação em um país em decadência nos cega, de certa maneira, diante dos elementos de modernidade do século XXI (ainda que não em relação aos elementos de barbárie e destruição ambiental).
[7] Trotsky repete isso último uma e mil vezes em seus textos: “A economia soviética em perigo”, 1932; “A degeneração da teoria e teoria da degeneração”, 1933; “Stalin como teórico”, 1930; etc.
[8] Em seu Caderno de notas. O marxismo sobre o Estado, janeiro-fevereiro de 1917, Lênin extrai uma série de citações e faz uma série de anotações brilhantes sobre o Estado e a transição socialista, das quais queremos deixar aqui algumas “pérolas” (não se aprecia o suficiente que Lênin foi um teórico marxista de primeira ordem e não só um “prático brilhante”, como se afirma habitualmente de maneira reducionista devido ao caráter disperso de sua obra): “Seria preciso abandonar toda essa conversa fiada sobre o Estado, sobretudo desde a Comuna, que não era um Estado no verdadeiro sentido da palavra (…) Já a obra de Marx (…) diz expressamente que, com a implantação da ordem social socialista, o Estado se dissolverá por si mesmo e desaparecerá. Sendo o «Estado», como é, uma instituição meramente transitória, que se utiliza na luta, na revolução, para esmagar pela violência o adversário, é um absurdo falar de um «Estado popular livre»: enquanto o proletariado necessitar (sublinhado por Engels) ainda do Estado, não o necessitará no interesse da liberdade, mas para esmagar seus adversários, e tão logo se possa falar de liberdade, o Estado como tal deixará de existir. Por isso nós propusemos dizer sempre, em vez de «Estado» (novamente sublinhado por Engels), «comunidade» [Gemeinwesen], uma boa e antiga palavra alemã que equivale à palavra francesa «Comuna»” (Lênin em Crítica do Programa de Gotha, 1972: 97/8).
[9] O Bujarin ainda esquerdista, em sua obra A economia do período de transição, 1920, assinala mecanicamente que tal economia não se baseia no lucro, mas na satisfação das necessidades humanas, e Lênin, em uma marginalia, lhe espeta: “não está logrado”, dando a entender que, embora a economia da transição não se baseie efetivamente em um lucro ao estilo capitalista, não se deve perder de vista que, como em toda economia, o gasto de recursos deve ter alguma proporção com o produto obtido. Desperdiçar recursos humanos e naturais, como fez o stalinismo, não é um critério da transição socialista.
[10] O produtivismo, neste marco, é a ideia de uma dotação de trabalho humano e recursos naturais inesgotável; isso é a ruptura com a ideia marxista do são metabolismo da humanidade com a natureza (Marx, Mészáros, Foster).
[11] Cremos recordar que o brasileiro Ricardo Antunes, reconhecido sociólogo do trabalho, em sua obra Os sentidos do trabalho, dedicava-se a essas delimitações, mas não pudemos revisá-la ao escrever esta nota.
[12] O consumismo capitalista é uma degeneração fetichista da satisfação historicamente determinada das necessidades médias.
[13] No mesmo sentido: “Na prática, a «racionalização» vem sempre acompanhada da demissão de trabalhadores e do rebaixamento das condições materiais de outros. Isso inevitavelmente cria desconfiança na massa dos trabalhadores na racionalização como tal” (Cliff citando Trotsky, capítulo 10).
Por outro lado, Cliff coloca alguns dos defeitos da Plataforma da Oposição Conjunta, como a falta de atenção às relações de produção nas fábricas; não coloca a reivindicação do restabelecimento do controle operário e do conselhismo, mas perde de vista o problema mais agudo que tinha a Plataforma: o pouco espaço dedicado ao regime partidário e seu caráter empírico, que levou de cabeça à capitulação da maioria da Oposição quando do giro stalinista à coletivização forçosa (Cliff sim sublinha isso último, mas sua abordagem, como em toda essa obra, é mais estritamente política que teórica).
Dedicar-nos-emos à combinação entre o plano centralizado, a democracia soviética e o controle ou administração operária em cada unidade de trabalho em nosso próximo artigo dedicado à planificação propriamente dita.
Nesse artigo também levaremos adiante um repasse a modo de contraste entre as posições de Lênin a respeito do chamado “capitalismo de Estado” e a crítica a esse conceito por parte da “Oposição comunista” de 1918 (Bujarin e companhia) e que recolhem hoje muitos dos autores marxistas-autonomistas.
Enquanto isso, deixamos esta aguda citação crítica do economicismo da posição da esquerda comunista: “Em parte, sua oposição às políticas de Lênin [em 1918 e retomadas em 1921] estava enraizada na convicção determinista de que, em última análise, «a política se funda na economia, e que quem quer que possua o poder de comando da produção, cedo ou tarde terá o poder político». Em concordância com isso, rejeitavam totalmente a proposição de Lênin de que a promoção do «capitalismo de Estado» na economia não prejudicaria o poder soviético” (Ronald I. Kowalski, 1991: 106).
[14] Trotsky insiste em que por preço e qualidade, assim como por produtividade e quantidade, as mercadorias do mercado nacional devem aproximar-se da média internacional. E subentende-se: em condições permanentes de escassez e baixa qualidade (qualidade e quantidade têm óbvias relações dialéticas), a sociedade se desgosta com o Estado proletário e tende a encantar-se com o capitalismo mundial.
[15] Está aí o exemplo histórico dos centenas de milhares que cruzaram da Hungria e da RDA para a República Federal da Alemanha em busca dos Reichsmarks e das mercadorias ocidentais quando da queda do Muro de Berlim. Multidões tentadas não somente pelas liberdades democráticas como também pelas possibilidades de consumo ocidentais. Como sabemos, a expectativa saiu bastante mal, porque até hoje, 35 anos depois, nos quatro Länder ex-orientais segue-se vivendo pior que no resto do país germânico.
[16] Cliff afirma que Trotsky utilizou de fato esse conceito em seu discurso diante do XII Congresso do partido (abril de 1923), mas adverte que existia uma “profunda diferença” entre ele e Preobrajensky, tal qual assinalamos inúmeras vezes: a abordagem nacionalista do economista soviético em oposição à internacionalista do dirigente do Exército Vermelho.
[17] O mais agudo dessas teses é quando denunciavam a apreciação stalinista do campesinato pobre: “«A vila está ainda permeada por métodos passivos de pensamento. Põe suas esperanças na GPU [sic], nas autoridades, em tudo o imaginável, exceto seu próprio poder. Essa maneira inercial e passiva de pensar deve ser removida da mentalidade dos camponeses pobres (village poor)» (Stalin, discurso ante o XIV Congresso Bolchevique). Essa não é uma estimativa proletária dos pobres das vilas, e sim uma estimativa kulak, uma estimativa desde o ponto de vista do proprietário latifundiário” (idem).
Traduzido de Trabajo y «autoexplotación» en la transición
Ilustração: Lyubov Sergeevna Popova. Paisaje urbano cubista, 1914