Marx, o Estado e o stalinismo

A título de breve nota. Buenos Aires, São Paulo, setembro de 2023.

Apresentamos abaixo o primeiro de cinco artigos lançados como Suplemento Semanal de Izquierda Web, o semanário eletrônico da Corrente Internacional Socialismo ou Barbárie, que conformam uma coletânea com o título geral “Marxismo e Stalinismo”, cujo autor é Roberto Sáenz, principal dirigente da corrente. O primeiro texto, reproduzido aqui, foi escrito durante uma viagem a São Paulo em setembro de 2023 e trata dos apontamentos de Marx sobre o Estado a partir da “Crítica da Filosofia do Estado de Hegel”. 

Marx faz uma operação fundamental para toda a sua obra política – e econômica, também – quando inverte a formulação hegeliana de que o Estado é sujeito e a sociedade é predicado. Em sua nota Marx, o Estado e o Stalinismo, Sáenz refere-se não apenas a Marx mas, também, a uma série de outros militantes e pensadores, tais como Engels, Lênin, Trotsky, Rakovski e outros não menos importantes. Todos eles contribuem para a compreensão de que essa inversão aparente das causalidades, pois é a sociedade de classes, bem como as estamentais, que cria o Estado e não o contrário, só é possível de ser compreendida a partir da análise das estruturas alienadas que surgem, principalmente, no capitalismo. Dessa forma, será justamente a partir da luta de classes que as massas trabalhadoras não vão apenas revelar para toda a sociedade o que está anuviado, mas a partir da sua auto-organização construir uma estrutura político-estatal que questione praticamente o Estado burguês. Ou seja, trata-se de destruir o Estado burguês e construir um Estado revolucionário que vá no sentido de se autodestruir, que impulsione conscientemente a superação da dominação do trabalho morto sobre o trabalho vivo, do trabalho direto sobre o indireto e dos dominantes sobe os dominados; o que só é possível com um processo de superação do Estado burguês por uma forma de poder estatal que negue a si mesmo, dando lugar a um Estado anti-Estado, na genial formulação de Lênin, que possa realizar transição para uma sociedade sem classes e sem Estado. Nesse processo em que todas as diferenças de classe – não apenas as de propriedade direta sobre os meios de produção – desaparecem se pode reincorporar ao tecido social a gestão das coisas e das pessoas, permitindo, assim, que a realização do individuo não seja contraditória à realização da sociedade como um todo. 

Os outros quatro artigos, que serão publicados na sequência, são resenhas do livro de Antoine Artous “Marx, el Estado y la política” e do tomo 5 do livro de Pierre Naville “Le Nouveau Léviathan”. Tais publicações seguem a linha do esforço teórico que estamos fazendo como corrente internacional visando o relançamento do marxismo revolucionário no século XXI como instrumento de reflexão crítica e ação transformadora da realidade no sentido da cada vez mais necessária revolução e da transição ao socialismo.  

Redação 


“A classe operária está concentrada nas fábricas das grandes cidades. Essas condições permitem que o trabalhador eleve seu nível de consciência significativamente acima do campesinato. Os intelectuais que vêm das fileiras do proletariado não rompem o contato com ele; vivem nas cidades e os trabalhadores estão sob sua influência. Quando as massas deixam o terreno da vida pública e voltam para suas casas, refugiando-se confusas, frustradas e exaustas, dentro das quatro paredes de suas casas, cria-se um vácuo. Esse vazio é preenchido pela nova burocracia. É por isso que, na era da reação triunfante, o aparato estatal, a máquina policial-militar, desempenha um papel imenso, que era desconhecido do antigo regime.”

(Trotsky, “Stalin”, Fondo de Cultura Económica, 2020, p.490)

A Crítica da Filosofia do Estado de Hegel, texto do jovem Marx, de 1843, é uma poderosa ferramenta de crítica às experiências não capitalistas do século passado, uma verdadeira joia teórica que não por ser um texto incompleto deixe de ser enormemente rico.[1]. Na obra que estamos preparando (já publicamos um primeiro pdf do Volume I, mas ainda está sujeito a correção e não está disponível para leitura: Marxismo e a Transição Socialista. Volume I: Estado, Poder e Burocracia), enfatizamos que, em nossa opinião, contrastar a experiência do século passado e a elaboração antiburocrática de Lênin, Trotsky, Rakovsky e outros socialistas revolucionários que os sucederam no pós-guerra com a elaboração de Marx (e, em certa medida, de Engels) sobre o Estado, é extremamente esclarecedor para dar conta da realidade original que era o stalinismo.

O trabalho de Marx e Engels sobre o Estado tem dois patamares. De um lado, a crítica teórica do jovem Marx ao Estado (uma espécie de filosofia política sobre o mesmo). Por outro lado, a análise histórica, política e mesmo antropológica, conforme o caso, já na maturidade de Marx e Engels, dos desdobramentos histórico-concretos de cada Estado: as formas históricas mutáveis que o Estado assumiu nas diferentes sociedades e mesmo a ausência do Estado nas formações sociais do chamado comunismo primitivo, tema este último sobre o qual Rosa Luxemburgo também contribui em um de seus cursos de formação para a socialdemocracia alemã, na primeira década do século 20. Não vamos nos referir aqui aos temas histórico-políticos ou antropológicos mais específicos. No que diz respeito especificamente à A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Engels, escrevemos um texto específico, “Engels, o Antropólogo“, razão pela qual nos referimos a ele.

Pensamos que essas obras ou abordagens operam, de certa forma, como “complementos dialéticos” da incipiente abordagem teórico-política situada, centralmente, na obra do jovem Marx. E apontamos isso com o mesmo tipo de abordagem de Musto, Kevin Anderson ou Lefebvre, que veem em Marx uma constante progressão, um work in progress, como dissemos. Mas não a história de constantes “rupturas” que Althusser viu: toda a obra de Marx tem valor e é, em grande medida, “complementar”. Embora, logicamente, haja superações dialéticas em sua obra que especificam e completam, e ganham em cientificidade em relação a intuições anteriores que não estão totalmente desenvolvidas, incompletas ou mesmo talvez errôneas.

No entanto, essa abordagem da “complementaridade” na elaboração teórico-estratégica de Marx é importante o suficiente para entender que nada em sua obra pode ser descartado: sua tese inicial de doutorado sobre Demócrito e Epicuro, seus fichamentos de autores de sua extrema juventude (método de trabalho que manteve até sua morte), passando por toda a sua obra e chegando à sua obra tardia após a publicação do primeiro volume de O Capital, tudo tem um valor enorme. Embora, é claro, não possa ser em detrimento do estudo do resto dos clássicos não-marxistas: dos filósofos gregos, passando pelo Renascimento (obras como  La philosophie de la Reinaissance, de Ernest Bloch, são de enorme riqueza), os filósofos políticos e economistas políticos da ascensão burguesa, a filosofia clássica alemã (especialmente Hegel, a nosso ver, mas diz-se que não devemos ser injustos com Kant e outros filósofos da mesma escola), etc. Cortando a lista aqui para não ser injusto com ninguém e não pensar fora do Ocidente, tudo isso compõe uma “totalidade” útil – extraordinária mesmo, de fato – quando se trata do enriquecimento do marxismo. Sem falar na elaboração política e teórica do marxismo e do marxismo revolucionário no século passado, da ecologia marxista atual, etc.

Voltando a Marx, paradoxalmente, seu trabalho histórico-político e antropológico sobre o Estado (incluindo Engels também neste) tem sido mais abordado, mais amplamente explorado, do que o trabalho teórico-político do jovem Marx sobre o Estado. Também Os perigos profissionais do poder, de  Christian Rakovsky, O Estado e a revolução, de  Lênin, e A revolução traída, de Trotsky, além  de O Leviatã, de  Pierre Naville, Teoria da Revolução de Karl Marx, de  Hal Draper, e também Marx, Estado e Política de Antoine Artous, que são tantas contribuições complementares à abordagem da teoria do Estado (e da sociedade) no marxismo.

De qualquer forma, esta breve ficha temática escrita nesta ocasião em condições de certa “urgência” (visito nossos companheiros do SoB Brasil em São Paulo) procura apenas destacar alguns aspectos da crítica de Marx à concepção de Estado de Hegel. Notamos que não estudamos a obra de referência de Hegel sobre o assunto, mas apenas a crítica de Marx, nem outras obras de Hegel, como a Filosofia da História,  onde o problema do Estado paira novamente.

A  Crítica de Marx à Filosofia do Estado de Hegel é constituída por uma série de brilhantes notas críticas sobre uma obra maior de Hegel dedicada a filosofia do direito. Marx se detém, centralmente, na parte que Hegel dedica ao Estado, e não se ocupa do resto. Note-se, no entanto, que muitas vezes é esquecido que Marx era um grande conhecedor do direito (Artous). Daí, por exemplo, sua brilhante Crítica ao Programa de Gotha, na qual trata com grande penetração o problema do direito (burguês), ponto de apoio a Evgeny Pashukanis em sua Teoria do Direito e o Marxismo, obra de valor.

Na crítica de Marx a Hegel há vários aspectos substantivos e metodológicos. O aspecto metodológico, amplamente explorado, tem a ver centralmente com a crítica de Hegel à inversão de sujeito e predicado (o determinante e o determinado na questão da ordem de prioridade social): o Estado é aquele que aparece como “sujeito” da sociedade e a própria sociedade como predicado dela e não o inverso.  como é a sequência real (uma sequência que Engels estabelece com clareza, embora às vezes mecanicamente, em A origem da família, da propriedade privada e do Estado). Isso leva a uma concepção hipostasiada do Estado, carregada de falsos atributos, onde é este e não a sociedade, repetimos, que aparece como sujeito das relações sociais.

Marx aponta várias vezes que Hegel não pretende fazer a história da realidade, para dizer de maneira simplificada, mas a história das ideias de realidade, ao mesmo tempo em que transforma essa história das ideias de realidade em realidade; a própria realidade seria apenas um derivado (Marx diz isso em termos mais ricos e complexos, mas, em essência, acreditamos que não estamos traindo suas palavras nesta pequena nota).

É evidente que dessa forma não é possível ter uma abordagem do caráter histórico-concreto do Estado como organismo condenado ao desaparecimento, pois seria como dizer que a própria sociedade está condenada a desaparecer, e isso no arco temporal da humanidade é impossível.

Lembremos que Engels repete em sua inacabada Dialética da Natureza que tudo o que existe está fadado a perecer, e assim éMas, para além da potencial – e muito real! – capacidade de autodestruição da humanidade capitalista neste século 21 e da imensa atualidade da proposta de Rosa sobre a alternativa histórica do socialismo ou barbárie, o desaparecimento da sociedade, da humanidade, podemos situá-la em uma temporalidade ligada à evolução do universo, que em nossa contemporaneidade nos é evidentemente infinita:

“Há mais de trinta anos, aderi à teoria filosófica de que a vida humana só tem sentido na medida em que é vivida e vivida a serviço de algo infinito. Para nós, a humanidade é infinita. O resto é finito e, portanto, trabalhar para isso não tem sentido. Mesmo que a humanidade também tivesse um propósito externo, esse propósito corresponderia a um futuro tão remoto que podemos considerar a humanidade como um infinito absoluto. Nisto, e só nisto, sempre vi o sentido da vida. E agora, olhando para todo o meu passado, do qual passei vinte e sete anos nas fileiras do nosso Partido, sinto-me no direito de dizer que durante toda a minha vida consciente me mantive fiel a esta filosofia. Tenho vivido segundo esta interpretação da vida: trabalhar e lutar pelo bem da humanidade. Acho que posso dizer que nenhum dia da minha existência foi sem sentido” (Carta de Adolf Joffe a Leon Trotsky antes de seu suicídio, 17/11/27). [2]

Voltando ao nosso argumento, se a estrutura social determinada de sociedade também é histórica, se tem formas históricas, se concebemos desaparecendo as formas classistas ou efemeramente burocráticas de sociedade (como a URSS stalinista), obviamente também devemos conceber o desaparecimento do Estado (dissolvendo-se, abolindo-se).

De fato, o Estado está fadado a desaparecer da sociedade na medida em que se eliminem as desigualdades e opressões como produto do desenvolvimento social emancipado.

No texto de Marx há três ou quatro núcleos que nos interessa listar brevemente aqui. A primeira é a afirmação de que a democracia é ao mesmo tempo forma e conteúdo. Marx parte da separação do Estado moderno da sociedade. O Estado moderno é uma forma historicamente determinada de abstração política onde todos os habitantes aparecem como cidadãos, isto é, membros de uma comunidade política, mas de uma comunidade política que abstratamente iguala pessoas desiguais em suas vidas cotidianas na sociedade civil, na economia (trabalhadores e burguesia obviamente não são a mesma coisa, não têm status social igual:  alguns são explorados, outros exploradores).

Marx aponta que o Estado burguês não resolve a desigualdade na base da sociedade, mas se constitui justamente à margem dela, em sua base, deixando intocada essa desigualdade que é seu pressuposto, o pressuposto de sua abstração, da igualdade dos cidadãos no terreno celeste do Estado, no terreno de “uma pessoa, um voto”. O Estado burguês parece equiparar as pessoas como cidadãos nos céus da “política”, mas o faz supondo que não interfira nas desigualdades da sociedade civil, quando na realidade intervém, consagrando o império da propriedade privada, a precarização do emprego etc.

Assim, autores como Antoine Artous ou Lucio Colletti falam do Estado capitalista como uma abstração política em Marx, no sentido de que, com efeito, o Estado burguês interpela abstratamente as pessoas como cidadãos com direitos políticos iguais, o que é materialmente falso: o trabalhador só tem seu voto, e o burguês todas as alavancas da economia e do Estado à sua disposição; iguala no mundo ideal o que é desigual no mundo real.

Assim, Marx vendo esse tipo de Estado (burguês) como uma forma histórico-concreta, aponta que a democracia – a real – é forma e conteúdo, ou seja, a sobreposição do Estado e da sociedade.

Vamos nos aprofundar nessa ideia. Se a democracia deixa de ser uma mera forma de representação e passa a ser uma espécie de “sociedade dentro do Estado”, isso significa uma de duas coisas: a) o que está sendo afirmado é uma contradição em termos, um oximoro, ou b) significa que quando “a sociedade está no Estado” o que está acontecendo é que o Estado, como abstração, tende a desaparecer, está tendendo a desaparecer (tarefa da transição socialista e do comunismo).

Esse conceito é importante para a transição e a experiência do século passado, pois precisamente, como Trotsky assinalou no capítulo III de A Revolução Traída, “O socialismo e o Estado”, com o desenvolvimento do socialismo, com a tendência a liquidar a exploração e as desigualdades na base da sociedade e a concomitante tendência para que o Estado se transformasse em um semiEstado proletário (O Estado e a Revolução, Lênin, um texto educativo que deve ser estudado por todos os militantes); quando massas crescentes da população tomam em suas mãos todas as tarefas de administrar a sociedade, então a sobreposição da sociedade anteriormente explorada e oprimida com o Estado torna esta última supérflua, realizando-se a afirmação de Marx da democracia como forma e conteúdo (além do fato de que a “democracia” é uma forma de Estado,  até mesmo a democracia proletária, que, como a própria política, também tende a desaparecer). [3]

Para esclarecer melhor: a democracia como forma de Estado, toda democracia, tende a desaparecer junto com o Estado. É por isso que Lênin fala de regras pós sociedades de exploração ligadas aos costumes, mas esse é um assunto que se tornou complexo e que não podemos abordar aqui. O que fica claro é que a gestão coletiva dos negócios, democrática nesse sentido, o choque de ideias e interesses, mesmo que não sejam classistas, a emulação em todos os terrenos etc., não desaparecerão e não devem desaparecer, mas, de qualquer forma, o que fica claro é que esse exercício não deve dar origem a diferenciações sociais, nem de sexualidade, cor da pele ou o que for, mas ao livre desenvolvimento de cada um como medida do desenvolvimento de todos. É no mesmo sentido que se critica a ideia de Engels da transição do governo do povo para a administração das coisas. O governo do povo chega ao fim, mas os assuntos gerais e universais da sociedade não podem ser reduzidos a mera administração. Tratamos desse problema circunscrito à transição socialista em nosso Marxismo e a transição socialista. Volume I: Estado, Poder e Burocracia.

Voltando ao nosso argumento após a longa digressão anterior: se é a sociedade que está à frente do Estado, o Estado não se justifica mais: não tem sentido, não tem razão de ser.

Isso está ligado a uma segunda questão: a abordagem altamente instrutiva de Marx sobre a burocracia. Marx apresenta a burocracia como um “tecido de ilusões práticas”.

Do que se trata essa abordagem? Parte-se da proposição de que a burocracia não lida com suas próprias questões, mas com as questões que estão na sociedade. Pode ser relacionado à ideia de Trotsky em Novo Curso de que a burocracia é a “administração dos homens e das coisas“. Ou seja, administra coisas que são pré-existentes. No entanto, também é verdade que há uma reação da burocracia sobre a sociedade. Assim, Marx aponta que a burocracia também se transforma em corporação (como a ideia de corporações herdadas do feudalismo, agrupamento de interesses de pessoas em igualdade de condições na sociedade civil). E quando se transforma em corporação, o faz como consequência lutar contra suas causas: busca fazer valer seus próprios interesses burocráticos. Os interesses da burocracia são os interesses do cargo, da administração dos homens e das coisas, mas quando isso é levado ao limite, os interesses do cargo são transformados nos interesses do Estado, e então o tecido de ilusões práticas é transformado no tecido social real.

Pierre Naville afirma claramente em The Nouveau Leviathan que a economia é sobre relações de exploração e o Estado é sobre relações de dominação. Mas em sua obra, erudita e brilhante, talvez lhe escape que nas sociedades de transição, como muito bem aponta Antoine Artous na senda de Christian Rakovsky (que é nosso verdadeiro inspirador em toda essa história junto com Marx, Engels, Lenin e Trotsky), o Estado e a economia se sobrepõem, razão pela qual, na medida em que as relações de autoexploração subsistem materialmente na transição (Crítica ao Programa de Gotha), é aí que a burocracia stalinista encontra seus alicerces para relançar, mesmo que inorganicamente, as relações de exploração e opressão que caracterizaram a URSS sob o stalinismo, apesar da sobrevivência dos “resquícios” da revolução.

A burocracia stalinista é um tipo especial de burocracia que, como dizia Trotsky, não tem uma classe fundamental ao seu lado, razão pela qual é mais do que uma mera burocracia, mas menos do que uma classe orgânica: é uma “classe política” que, a partir de seu domínio do Estado e do monopólio dos meios de produção nacionalizados, aproveita o excedente social criado pela autoexploração ou exploração mútua dos trabalhadores (Naville). E assim a consequência reverte (vinga-se) sobre o conteúdo no caso concreto da formação social burocrática da URSS stalinizada, que nunca se tornou uma sociedade orgânica, mas uma sociedade de transição inibida e finalmente abortada.

O último grande tema que Marx aborda em sua obra sobre o Estado em Hegel é o mayorazgo. É uma forma de propriedade privada feudal tão absoluta que aparece acima das disposições, dos desejos das pessoas.

O que é Mayorazgo? Instituição pela qual o primogênito herda todos os bens fundiários, que não podem ser subdivididos. Uma conhecida e histórica instituição da propriedade agrária, que perdurou até a modernidade, quando foi declarada abolida e as propriedades agrárias foram condenadas a serem subdivididas com base na liberdade do mercado.

Em outras palavras, a transição da propriedade agrária privada herdada do feudalismo tornou-se propriamente propriedade agrária capitalista, onde a propriedade pode ser, e em muitos casos é, reunida em condições exclusivamente econômicas: você tem o capital, você compra a propriedade do tamanho que quiser!

Mas isso não depende de uma lei particular de herança, extraeconômica, como o majorazgo (embora seu caráter extraeconômico escondesse uma certa “racionalidade” de não compartimentar a propriedade, para além do fato de que a propriedade extensiva, por si só, não é um índice de produtividade incrementada), mas das leis do livre mercado onde tudo é vendido e tudo é comprado se você tiver capital para isso.

No caso do mayorazgo não é assim: uma lei extraeconômica de propriedade privada absoluta se coloca acima de homens e mulheres e decide seu destino: o primogênito recebe tudo, os outros não recebem nada.

Marx expõe com sua acuidade como as relações reais se invertem no mayorazgonão são as pessoas que determinam as instituições que as governam, mas as instituições parecem personalizar-se e determinar as pessoas como objetos (formas de alienação e fetichismo que se multiplicarão no capitalismo).

não se trata aqui da falsa inversão hegeliana de sujeito e predicado, mas de uma inversão “real” no estilo do fetichismo da mercadoria que Marx desenvolveria décadas depois em O Capitaltrata-se de uma inversão real e atuante que se diferencia da dominação do trabalho morto sobre o trabalho vivo no capitalismo, mas, como este é uma estrutura morta, objetiva, que determina o destino das pessoas desde o nascimento até a morte.

Ainda que, diga-se, siga sendo uma relação fetichizada: em última análise, todas as relações derivam da sociedade e podem ser revertidas pela luta de classes: o trabalho morto realmente domina o trabalho vivo no capitalismo, mas é o trabalho vivo que cria o trabalho morto, e com a revolução socialista que vai além do capital – Mészáros – a classe operária recupera o controle do trabalho acumulado que é produto do seu próprio esforço.

Voltando ao mayorazgo, é por isso que Marx também aponta agudamente que se trata de uma “lei zoológica”, uma lei “animal”, como se fosse natural e não histórico-social, que determina o destino dos donos humanos: o primogênito domina os outros irmãos.

Marx encerra suas anotações sobre a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel com a crítica do mayorazgo, deixando-nos uma preciosa elaboração, uma preciosa crítica ao Estado capitalista e, de modo mais geral, a algumas características desse Estado como instituição separada da sociedade.

É por isso que intitulamos esta pequena nota de “Marx, o Estado e o stalinismo“, porque, na realidade, a concepção hipostática do Estado do stalinismo não é a de Marx, mas a de Hegel, na medida em que o stalinismo, de fato, se baseava empiricamente em uma concepção hipostática do Estado para justificar sua dominação.

Para Marx, ao contrário do ceticismo radical de Weber, uma das tendências históricas em ação é a tendência de a sociedade assumir tarefas estatais que parecem separadas; o oposto da heteronomia (André Gorz erroneamente acredita que a separação entre autonomia e heteronomia é intransponível).

Além disso, a complexidade da vida social e econômica, o desenvolvimento das forças produtivas, cria contraditoriamente as condições para a “difundir a administração”: colocando-a cada vez mais nas mãos de toda a sociedade.

A crescente riqueza de recursos técnicos, o desenvolvimento geral da cultura, o enriquecimento material e potencial da vida, bem como a possibilidade de arrancar de uma burocracia o monopólio da administração, espalhando suas tarefas por toda a sociedade e superando a duplicação de tarefas por meio de um “aparato separado de especialistas”, devem ser um dos grandes desafios da transição socialista.

Diante desse desafio, não esquematicamente, mas como uma tendência aberta a múltiplas possibilidades, com linhas de desenvolvimento eventualmente em tensão, mas não por isso opostas, coloca-se parte do conteúdo da ditadura proletária em transição, para além do caráter ditatorial férreo que precisa ser exercido sobre a antiga classe dominante até que a revolução internacional triunfe.

A complexidade técnica pela riqueza da vida, e a simplificação social da administração devido à superação das classes sociais, são questões, tensões, que devem ser enfrentadas desde a transição socialista até chegar ao seu ápice no comunismo, superando a dinâmica oposta instalada pelo stalinismo.

Notas:

[1] Marcello Musto deixa claro que toda a obra de Marx é, em grande parte, uma obra inacabada. E a realidade é que todo trabalho em andamento, toda pesquisa sobre a riqueza infinita da realidade, não pode ser outra coisa. Muitas das chamadas “obras completas” são a soma das elaborações de um ou outro marxista ou pensador. Mas apenas obras fechadas, os “sistemas”, podem ser obras “concluídas”. Mas esse é justamente o seu problema: uma obra acabada sempre perde uma parte da realidade porque, como disse Goethe, “cinza é a teoria, verde é a árvore da vida. É claro que é preciso chegar a sínteses parciais, e há um grande número de obras que o são. Sem ir muito longe, o Volume I de O Capital é apenas isso, um volume acabado. Mas, como se sabe, O Capital em si é uma obra inacabada, não só porque os volumes II e III foram publicados por Engels, mas também porque Marx planejou a obra em seis volumes. E isso em nada diminui o imenso projeto de pesquisa que Marx nos legou. Tomando um autor em suas “antípodas”, Max Weber, apenas sua Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo é uma obra acabada e em seus termos brilhante, mas sua imensa Economia e Sociedade é uma soma de textos inacabados como obra.

[2] Essa abordagem faz parte da dialética materialista, mas não nos interessa desenvolvê-la aqui.

[3] É discutível que toda política tende a desaparecer, mas pelo menos o faz como exercício dos assuntos coletivos e universais da sociedade, por uma minoria. Assim, também, a ditadura proletária é uma forma política, ainda que historicamente original: a ditadura da maioria sobre a minoria, e essa própria democracia proletária ainda tem um conteúdo de opressão da burguesia ou ex-burguesia e das classes proprietárias, a quem nega direitos de cidadania (direitos políticos).

 

Tradução de José Roberto Silva do original em https://izquierdaweb.com/marx-el-estado-y-el-estalinismo/ 

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