Em mais um aniversário da tomada da Bastilha

Jacobinos e bolcheviques em perspectivas comparadas

Na sequência de outros artigos de Roberto Sáenz – que são fruto de um intenso trabalho de leituras de diversos autores que se dedicaram à análise da Revolução Russa, e que embasaram a construção do Vol. 1 de “Marxismo e a transição socialista”, cuja publicação em português se dará no primeiro trimestre de 2026 pela Editora Boitempo -, publicamos abaixo “Jacobinos e bolcheviques em perspectivas comparadas”

O artigo da conta das diversas leituras e análises do que Trotsky irá denominar de “O Termidor Soviético”, no cap. 5 de “Revolução Traída”: um processo que se inicia na guerra civil, quando elementos de terror, o terror vermelho, são utilizadas diante do movimento contrarrevolucionário dos “Brancos”, o terror branco e que vai se construindo até 1936. 

Como Sáenz irá demonstrar, os elementos de violência e defesa do poder socialista contra os seus inimigos internos e externos não pode ser ingênuo, mas, ao mesmo tempo, em nenhum caso, pode ser a defesa do poder em si, senão a defesa da “ditadura de novo tipo” entrelaçada dialeticamente com o da “democracia de novo tipo”. Ou seja: a ação militar não pode substitur a política e o centralismo não pode substituir a democracia socialista, seja na atividade do Estado ou do partido. Do contrário, as práticas de viés burocrático – os agentes dos Estado substituindo a ação direta das massas – produzirão no a destruição da auto-organização das massas. Esse é um dos elementos centrais que bloqueou a transição socialista e sobre o qual o stalinismo se assentou e fez expandir; o final desta história já é conhecido: a derrota da única experiência de poder operário bem sucedido da história.

A atualidade deste texto não diz respeito apenas a uma leitura honesta do que foram as revoluções do século XX, mas é fundamental para a reconstrução das organizações revolucionárias e do socialismo no século XXI, pois os elementos de burocratização têm repercussão prática, podem minar a construção dos partidos e promover novas derrotas para os explorados e oprimidos na luta de classes.

Ressaltamos que na construção do partido revolucionário o centralismo é fundamental, mas, não pode significar o sacrifício da democracia baseada na existência do debate político interno contante, na intervenção reflexiva na luta de classes, na formação político-teórica e permanente na construção partidária livre da dependencia dos aparatos do Estado ou do aparato do movimento. 

Por esse ângulo é que não apenas fazemos a crítica ao processo de burocratização da Revolução Russa – uma revolução iminentemente socialsita – e aos processos revolucionários da segunda metade do século XX que não contaram com a mesma subjetividade socialista de Outubro de 1917, mas também nos rearmamos teórica, estrategicamente e programáticamente para que o centralismo democrático não seja substituído pelo centralismo burocrático, tão falado mas ao mesmo tempo tão incompreendido. Esse é um fenômeno profundo que está destruindo as organizações políticas que são incapazes de fazer a fundo o balanço teórico-político das revoluções do século XX, bem como da concepção objetivista das revolucções da da luta cotidiana que hoje ainda graça no interior da ampla maioria das correntes revolucionárias. Boa leitura! 

DA REDAÇÃO

Jacobinos e bolcheviques em perspectivas comparadas

Em mais um aniversário da tomada da Bastilha

Por Roberto Sáenz

Este artigo corresponde a um trecho de um trabalho mais amplo. Especificamente, ao capítulo 3 do artigo “Ascensão e queda do governo bolchevique”.

 

“A reação política que começa antes do Termidor consiste no fato de que o poder começa a passar, formalmente e na prática, para as mãos de um número cada vez mais restrito de cidadãos. As massas populares, inicialmente por uma situação de fato, posteriormente também de maneira legal, foram gradualmente excluídas do governo do país.”

Christian Rakovsky

Terror Vermelho e guerra civil

Vamos agora nos dedicar a aprofundar o processo específico que levou ao colapso dos elementos da democracia socialista no seio do governo bolchevique. Um capítulo particularmente delicado do governo bolchevique é o do Terror Vermelho e a formação da Cheka. Embora esta última tenha sido formada no final de dezembro de 1917 sob o nome de “Comissão Extraordinária Pan-Russa para a Luta contra a Contra-Revolução e a Sabotagem” (abreviada sob o nome Cheka, que significa “comissão extraordinária”), o Terror Vermelho acabou sendo declarado apenas meio ano depois, em resposta à tentativa de assassinato de Lenin pela socialista revolucionária de direita Fanny Kaplan, em agosto de 1918 (naquele dia, Moisés Uritsky, comissário do povo do Interior e chefe da Cheka de Petrogrado, foi assassinado). Horas após o atentado, foi emitido um decreto oficial convocando o “terror em massa” contra todos os inimigos da revolução, refletindo a lógica de ferro da guerra civil: golpe por golpe.

Antes de prosseguir, convém caracterizar primeiro a contrarrevolução branca. Mandel insiste que ela tinha características fascistas ou semifascistas: teria sido uma contrarrevolução burguesa e não feudal, restabelecendo o czarismo como instituição política e a propriedade privada. Mais difícil era o retorno à servidão, que havia sido abolida pelo czarismo em 1861.

De qualquer forma, o importante aqui é a exasperação dos acontecimentos com o desencadeamento da guerra civil; o desencadeamento das “Fúrias do Terror” e sua tendência intrínseca à radicalização: “Não pode haver revolução sem contrarrevolução; são fenômenos e processos inseparáveis, como a verdade e a falsidade: ‘Como a reação está ligada à ação’, elas estão unidas entre si, propiciando uma ‘ação histórica que é ao mesmo tempo dialética e impulsionada pela necessidade’” (Arno Mayer citando Hanna Arendt, 2014: 63).

Serge havia apontado que a guerra civil era a mais terrível de todas as guerras, onde se rompem todos os laços de solidariedade entre as classes sociais, na qual vizinhos que se conhecem e compartilham algum tipo de cotidiano se enfrentam. Trotsky insistia que não havia como uma guerra civil ser conduzida por métodos “humanitários”: era inconcebível sem a tomada de reféns, fuzilamentos e justiça sumária.

É preciso compreender a mecânica do confronto “olho por olho, dente por dente” que uma confrontação deste tipo implica, o fato de que o lado proletário não pode mostrar fraqueza. Quem mostrar fraqueza estará perdido, porque não se trata apenas de vencer a guerra no campo militar, mas também de arrastar a população neutra, que se definirá tanto pelo que compreender que está em jogo (direitos adquiridos, como a terra para os camponeses) quanto pelo lado que puder se impor. De fato, os camponeses mudaram de lado várias vezes na guerra civil, e se acabaram optando pelos bolcheviques foi porque intuíram que a vitória dos brancos significaria a restauração da propriedade dos grandes senhores: “O terror implica intimidação, ameaças, prisões preventivas. Evocando os precedentes históricos, as revoluções inglesa e francesa, a Guerra da Secessão e a Comuna de Paris, Trotsky explica que a ‘intimidação’ é um dos meios mais poderosos de ação política” (Broué, Trotsky: 205), e que a classe trabalhadora não poderia passar por uma guerra civil sem recorrer a ela.

É sabido como os comuneros de Paris pagaram caro por sua magnanimidade, um balanço destacado por Trotsky em Comunismo e terrorismo (em uma parte valiosa dessa obra em geral equivocada que defende a militarização do trabalho, entre outros problemas). Arno Mayer recolhe o testemunho da repressão exemplar de Thiers, o chefe da III República burguesa fundada sobre a derrota da Comuna, com 30.000 comuneros fuzilados. No mesmo sentido, Mandel destaca as características da guerra civil: “Na frente branca, os processos são muito curtos. Cada soldado é interrogado e, se admitir ser comunista, é imediatamente condenado à morte, fuzilado. Os vermelhos sabem disso perfeitamente” (testemunho de um jornalista reacionário em plena guerra civil, “Outubro de 1917: golpe de Estado ou revolução social?”).

Isso nos leva à problemática do Terror Vermelho, desencadeado em resposta ao Terror Branco da contrarrevolução. Houve também elementos do Terror Verde camponês (principalmente contra os bolcheviques) e terríveis pogroms contra os judeus (também engajados no lado da revolução): “Em 1918-21, a Ucrânia foi palco dos piores pogroms – massacres perpetrados contra as comunidades judaicas – que a Europa conheceu até a ‘solução final’ dos nazistas. Segundo Zvi Gitelman, houve 2.000 pogroms, 1.200 deles na Ucrânia. O autor estima em 150.000 o número total de vítimas.

Esses massacres eram acompanhados de crueldades jamais vistas: os homens eram enterrados até o pescoço e morriam sob os cascos dos cavalos que passavam por cima deles, ou eram literalmente despedaçados por cavalos que os puxavam em direções opostas. As crianças eram jogadas contra as paredes diante dos olhos de seus pais; as mulheres grávidas eram um alvo favorito, e seus fetos eram assassinados na frente delas. Milhares de mulheres foram estupradas e, como consequência dessa experiência, centenas delas perderam a razão” (Mandel, idem).

O debate sobre o terror é complexo. Ele se apresenta como uma necessidade na guerra civil. É claro que não é uma norma da ditadura proletária. Se não há guerra civil, não deve haver terror. Também não é o método da classe trabalhadora para resolver os assuntos, como foi entre os jacobinos, e não apenas pelas condições da guerra contra as potências estrangeiras e a contrarrevolução interna, mas também porque, de certa forma, os jacobinos estavam “suspensos no ar”. Em última instância, o terror não pode resolver o que a revolução não dá social e politicamente por si mesma. É por isso que Lenin e Trotsky falam dele como um sintoma de um governo fraco. Isso também é levantado no debate sobre a suposta inevitável “prematuridade” da revolução, segundo o jovem Lukacs (ver História e consciência de classe), uma abordagem esquerdista unilateral dessa problemática.

A classe de referência representada pelos jacobinos, a burguesia, acompanhou-os em sua radicalização por razões de oportunidade. Se taticamente os deixou agir, foi apenas por um período determinado e excepcional, enquanto durou a guerra. Assim que os jacobinos resolveram com sucesso essa tarefa, foram eliminados do mapa no Termidor de 1794 (28 de julho, segundo o calendário gregoriano), quando Robespierre e seus companheiros foram guilhotinados. Os jacobinos haviam tomado medidas como o teto para os preços do pão e outros bens de consumo básicos, o que questionava na prática, não de forma principista, a propriedade privada e o livre mercado; uma concessão aos setores populares de Paris. Assim que caíram, essas medidas foram arquivadas. A Revolução Francesa havia sido feita para estabelecer a propriedade privada, não para dar lugar a qualquer perspectiva socializadora.

Paradoxo dos paradoxos, sua queda ocorreu sem resistência da parte deles. A direção jacobina se viu no “limbo” assim que o abismo se abriu sob seus pés; eles expressaram o desmoronamento de sua base social na medida em que passaram pela guilhotina os líderes dos sans coulottes de Paris (hebertistas e enragés), assim como imediatamente depois atacaram a ala direita de seu próprio grupo, executando Danton e outros dirigentes.

Utopicamente, Robespierre acreditava ser possível suprimir as contradições sociais por meio do método expedito do terror. Não foi o caso dos bolcheviques: Lenin e Trotsky sempre foram explícitos ao afirmar que o terror significava medidas excepcionais ditadas pela guerra civil, não algo “virtuoso” em si mesmo: “Em uma revolução, o terror é um sinal, um sintoma de fraqueza, não de força”, disse Trotsky perante a comissão Dewey. Porque, como já apontamos, se um governo é forte, se sua legitimidade é suficiente, ele não precisa do terror. Ambos os líderes haviam estudado os ensinamentos da Comuna de Paris, que mostrou os perigos da ingenuidade. Lenin havia enfatizado as conquistas positivas da Comuna, assim como Marx. Mas Trotsky alertaria contra a magnanimidade em meio à guerra civil.

Outra coisa é que eles tivessem consciência suficiente das consequências indesejadas da guerra civil: a militarização da sociedade a que esse confronto levou, que teve como corolário restringir até limites dramáticos qualquer exercício real da democracia socialista.

Os teóricos da burguesia sempre se agarraram ao terror para condenar a contrarrevolução burocrática (ou mesmo fascista). Furet, Arendt e outros teóricos do “totalitarismo” repetiram essa afirmação nas últimas décadas, que tem antecedentes na condenação da direita ao terror jacobino; um julgamento que se sobrepunha à crítica à própria Revolução Francesa.

Em suma o terror revolucionário na revolução proletária é uma necessidade imposta pelas condições da luta, não uma norma a ser promovida em toda revolução. Uma necessidade que deve ser sempre colocada a serviço do fortalecimento do poder da classe operária, e não de sua substituição à frente do novo Estado proletário.

Isso nos leva, agora sim, à discussão sobre a Cheka. Mandel afirma que, por suas características “profissionais”, a Cheka acabou se revelando um erro: alimentou uma prática substitutiva. Ele destaca sua tendência a escapar de todo controle, inclusive da corrupção, porque a Cheka administrava os bens apropriados das vítimas da repressão. Ele aponta que a Cheka havia sido uma criação mais dos SR de esquerda do que dos próprios bolcheviques: “A tendência da Cheka de se tornar um aparato autônomo, cada vez menos controlável, estava presente desde o início (…). Serge usa o termo ‘degeneração profissional’. É por isso que nossa conclusão é, sem dúvida, que a criação da Cheka foi um erro” (Mandel, idem).

A complexidade do tema é evidente. O stalinismo se apoiou nesse precedente para levar adiante a repressão contra a revolução. Também é verdade que é difícil pensar em uma guerra civil sem polícia política. Mas isso não diminui em nada a perspicácia da argumentação de Serge: as tendências à autonomização da Cheka, as “deformações profissionais” que uma atividade como essa implica, mesmo que entre os chekistas se encontrassem muitos dos melhores militantes bolcheviques. Eles tinham um traje particular: jaquetas de couro preto que os identificavam. Consideravam-se “a brigada de vanguarda da revolução”.

É preciso ter em mente que sua atividade envolvia um elemento de substituição que, infelizmente, deu origem a deformações burocráticas (como vimos, o próprio Lenin não tinha certeza de poder proteger Martov da Cheka). Trata-se de um tipo de prática que tende a desmoralizar aqueles que a executam e que mais tarde seria instrumentalizada pelo stalinismo para outros fins: “Trotsky não dissimulava os perigos de corrupção e decomposição moral que uma atividade desse tipo pode gerar em suas próprias fileiras e, por isso, não cessava de insistir na necessidade de recrutar os melhores comunistas para integrar suas fileiras” (P. Broué, Trotsky: 204).

De todo modo, trata-se de uma questão muito complexa sobre a qual é preciso continuar refletindo.

O X Congresso do Partido Bolchevique

As coisas ficaram difíceis para a revolução no início de 1921. O período foi definido por Lenin como uma “crise geral da revolução”. Os bolcheviques haviam cometido vários erros. Entre eles, a ofensiva fracassada contra a Polônia. Mas, acima de tudo, pesou o atraso em acabar com o comunismo de guerra, que acabou colocando a maior parte da população contra o governo.

É nesse contexto que, como “contrapeso” ao desenvolvimento de práticas de mercado pela implementação da NEP, e diante dos perigos que considerava ameaçar o partido com uma possível divisão, Lenin comete o grave erro de promover a proibição de tendências e frações dentro do partido no X Congresso de março de 1921. Lenin havia pensado nisso como uma medida “excepcional”, mas isso não ficou registrado na resolução. Para piorar, havia cláusulas secretas que proibiam até mesmo grupos de opinião. Sabe-se que Stalin se baseou nessa resolução quando começou a luta pela sucessão (na verdade, a luta contra a burocratização da revolução).

O erro de suprimir a democracia partidária teve alcance universal: acabou matando a única instituição da ditadura proletária onde sobrevivia a democracia socialista. Porque assim como é inconcebível um partido revolucionário sem centralização, também o é sem debate democrático em suas fileiras. Deixa de ser um partido porque, em definitiva, é uma organização política, não uma mera ferramenta administrativa.

Sem troca de ideias, sem que o debate político preencha todas as suas veias, sem que se expresse a diversidade de pontos de vista, o partido morre enquanto organização política: “Sem eleições gerais, sem liberdade irrestrita de imprensa e reunião, sem uma livre luta de opiniões, a vida morre em toda instituição pública, torna-se uma mera aparência de vida, na qual só resta a burocracia como elemento ativo” (Rosa Luxemburgo, A Revolução Russa).

Embora Rosa estivesse se referindo aqui ao regime político da ditadura proletária, suas considerações são válidas para o partido revolucionário no poder. Daí que pareça haver certa inspiração “luxemburguista” no Novo Curso de Trotsky (1923). Talvez ele estivesse apenas recuperando intuições que havia apresentado em seu panfleto de juventude “Nossas tarefas políticas” (1904), que, embora fosse unilateral (Trotsky havia erroneamente empunhado ideias “democratistas” contra “O que fazer?” de Lenin), não foram deixadas de lado por Trotsky em tudo o que tinham de correto em relação aos alertas sobre o substitucionismo da classe operária.

Antes de prosseguirmos, façamos uma observação sobre a revolta dos marinheiros de Kronstadt no início de 1921. A guerra civil acabara de terminar. Mas das ruínas e destruições deixadas por ela, da fome que assolava amplos setores operários e camponeses devido à desorganização econômica, da constante “ruminação” das tendências não bolcheviques, surgiu a revolta de Kronstadt. Não compartilhamos a afirmação de Sabado e Michelaux de que o doloroso tratamento dado a essa rebelião tenha sido “um crime contra a revolução”: “Fossem quais fossem os perigos que estes últimos [os insurgentes de Kronstadt. RS] representavam para a revolução ao se rebelarem, a violência dessa repressão não tem justificativa”, afirmam, em consonância com quase todas as variantes e correntes do mandelismo.

Compartilhamos, sim, a definição de Trotsky, que situou essa repressão como uma “necessidade trágica” (o que não é o mesmo que um “erro trágico”, como Samary a qualifica). A rebelião surgiu, é verdade, de erros de avaliação dos próprios líderes bolcheviques, no sentido do atraso na transição do comunismo de guerra para as medidas de liberalização do mercado que seriam enfrentadas com a Nova Política Econômica. No entanto, o governo bolchevique não podia se dar ao luxo de suportar uma rebelião armada (na prática apoiada pela contrarrevolução) bem debaixo do nariz da capital da revolução, Petrogrado. Uma capital que, para completar, vinha sofrendo uma onda de greves recentes por conta do descontentamento dos trabalhadores com o extremo racionamento econômico. A influência dos mencheviques se fazia sentir em Petrogrado, assim como a dos SR e anarquistas na base naval de Kronstadt.

Jean Jaques Marie, eminente historiador trotskista, considera que o livro do historiador anarquista Paul Avrich, “A tragédia de Kronstadt”, é uma das principais, se não a principal, obra sobre a rebelião. Trata-se de um autor crítico do bolchevismo, evidentemente, que, de qualquer forma, dá a seguinte definição sobre a revolta: “No caso de Kronstadt, o historiador pode se permitir afirmar que sua simpatia está com os rebeldes, sem deixar de reconhecer que a repressão foi justificada” (J-J. Marie 2005: 11).

Todas as tendências do partido (incluindo os decistas e a Oposição Operária) votaram a favor da intervenção militar em Kronstadt. Zinoviev (líder do partido em Petrogrado) havia feito demagogia em torno da “democracia socialista” (no contexto do debate sobre os sindicatos), um fator que ajudou a desestabilizar a situação na região; Zinoviev era o presidente do partido na cidade. Ele fez isso para depois agir de forma excessivamente rude com os rebeldes.

Também é verdade que Tujachevsky comandou as operações militares sem piedade. Seguindo Avrich, Broué aponta que os mortos na reconquista da fortaleza pelo Exército Vermelho foram 10 mil; do lado rebelde, apenas 600. Isso explica, talvez, a dureza da repressão comandada por Dzerzhinsky, uma vez que os rebeldes foram derrotados. Mas o que mais poderia ser feito quando os marinheiros da guarnição de Kronstadt, exasperados pelas condições de vida dramáticas no final da guerra civil, foram instrumentalizados pelas forças contrarrevolucionárias. Embora Marie assinale que a única avaliação honesta da revolta é que ela foi espontânea, outra questão é que ela despertou imediatamente todas as expectativas entre a contrarrevolução no exílio e que, posteriormente, seus líderes acabariam sendo instrumentalizados pela reação. É preciso levar em conta que seu programa exigia, na prática, a formação de sovietes sem partidos: “A resolução votada será frequentemente resumida pelo slogan: ‘sovietes sem comunistas’, que apareceu pela primeira vez em uma revolta por fome em Murmansk… em maio de 1918 e foi retomado em numerosas revoltas camponesas. Este slogan não constava da resolução, mas o seu desenvolvimento irá nesse sentido” (J. J. Marie: 141). Ou seja, que os bolcheviques depusessem o poder.8

Trata-se de um debate complexo: “Levando em conta o fato de que a guerra civil ainda não havia terminado, [trata-se] de uma questão de julgamento político, tático, e não de uma questão de princípios. A dificuldade do debate reside no fato de que a maior parte baseia seu julgamento, em essência, em apreciações puramente políticas: natureza das reivindicações, natureza das forças políticas presentes, etc. Do nosso ponto de vista, em uma situação de guerra civil, o que é decisivo é a natureza das forças sociais presentes (e suas “lógicas”). (…) No entanto, as informações de que dispomos atualmente não permitem tirar conclusões definitivas (…). Segundo alguns (…), o que se colocava (…) era o problema da democracia soviética, proletária (…). Segundo outros, sobretudo Trotsky (…), era preciso negociar (…), mas não ceder a uma dinâmica social que poderia reforçar a ameaça contrarrevolucionária sobre Petrogrado, uma ameaça nacional e internacional, porque o degelo das águas poderia abrir as portas de Kronstadt à frota branca do Báltico” (Mandel, cit.).

Em nossa opinião, e tendo em vista os estudos tanto de Avrich quanto de Marie, os bolcheviques não tiveram outra alternativa senão reprimir a revolta, dando simultaneamente a guinada (tardia) para a NEP: acabar com a requisição de grãos exigida pelo crescente descontentamento camponês, passar ao livre comércio do excedente, etc. Isso acalmou os ânimos em todo o país e marcou o fim do comunismo de guerra.

O que realmente oferecia outro caminho, e faz parte de um consenso muito maior, é o grave erro da proibição das frações votada pelo X Congresso, ao que se soma a prejudicial proibição do que restava do multipartidarismo no seio dos sovietes (consequência lógica da resolução anterior, medida concretizada no início de 1922).

Naquela época, existiam no partido pelo menos o grupo Centralismo Democrático (uma tendência formada em 1919 e liderada por Sapronov e Smirnov), a Oposição Operária de Alexander Schliapnikov e Alexandra Kollontai e outros grupos menores. Além disso, recentemente havia ocorrido o debate sobre os sindicatos, que dividiu Lenin e Trotsky em uma acirrada disputa, este último apoiado por Bukharin, que por muito tempo havia liderado a fração de esquerda que se opôs ao Tratado de Brest-Litovsk. No total, cerca de oito grupos de opinião.

Lenin considerou essa proibição uma medida “provisória”. Mas o erro demonstrou uma grave falta de compreensão sobre a dinâmica geral do poder bolchevique: o alcance real da deformação burocrática acumulada por conta da guerra civil, do cansaço e da destruição das forças do proletariado, do esvaziamento dos sovietes, do isolamento internacional da revolução.

Lenin não teve o cuidado de definir explicitamente como “transitória” a resolução de proibição das oposições no seio do partido. A um grave erro acrescentou outro: “O texto de Lenin, adotado com apenas 30 votos da oposição, não menciona que a supressão do direito de fração e de tendência é temporária. Este texto compreende, além disso, uma disposição secreta que proíbe igualmente os grupos. Será utilizado posteriormente pela fração de Stalin por um prazo indefinido”. É interessante o que Serge levanta a esse respeito em seu texto “A 30 anos da Revolução Russa”: os bolcheviques “enlouqueceram diante da revolta de Kronstadt”; o “natural teria sido afrouxar a armadura do governo com uma política de tolerância e reconciliação para com os elementos socialistas e libertários dispostos a se situar no terreno da constituição soviética”.

Ele acrescenta que os bolcheviques tinham “medo de abrir a competição política” aos mencheviques e socialistas revolucionários; um erro que considera o mais grave de Lenin e Trotsky no poder, embora ao mesmo tempo ressalte que sua aposta era na revolução mundial como alternativa salvadora.

Houve uma falha na apreciação da dinâmica e da natureza do processo de burocratização. Isso é notório na angústia expressa por Lenin a partir de outubro de 1922, quando se recupera de sua primeira recaída na doença. Angústia diante de Stalin, que havia sido nomeado secretário-geral do partido no início daquele mesmo ano.9

O problema era que, se os sovietes estavam esvaziados, se não havia outro âmbito de democracia socialista além do partido, se a guerra civil e o retraimento dos trabalhadores estavam introduzindo deformações burocráticas no funcionamento do Estado operário, restringir a liberdade de debate político e de tendências no seio de um partido que era o depositário último da democracia socialista foi, insistimos, um erro dramático: “O erro de Lenin e Trotsky foi teorizar e generalizar as condições excepcionais do momento. Desde o início da NEP (…) o enfraquecimento numérico e a desclassificação da classe operária haviam cessado (…). Justamente nesse momento, a ampliação progressiva da democracia soviética poderia ter acelerado o restabelecimento sociopolítico da classe operária, facilitando sua lenta repolitização. Mas ao reduzir, nesse momento preciso e de forma draconiana, o que ainda restava em matéria de democracia, os dirigentes soviéticos agravaram a despolitização do proletariado e do partido” (Mandel, cit.).

Broué aponta o mesmo: o paradoxo de ter permitido a existência de outros partidos soviéticos durante a guerra civil e proibi-los ao final dela: “As organizações concorrentes do partido foram de fato proibidas, atingidas por prisões em massa e também parcialmente pelas autorizações para emigrar para o exterior. Pode-se estimar, juntamente com Avrich, que a oposição política na URSS havia sido silenciada no final de 1921” (Trotsky: 235). A promessa era, aparentemente, legalizá-los após o conflito civil. O historiador francês informa que, em 1919, Trotsky considerou “uma vitória” o fato de Martov ter usado a palavra “nós” para se referir ao poder dos sovietes e “nosso” para se referir ao Exército Vermelho. Ele também conta como delegados mencheviques e SR foram oficialmente convidados em dezembro de 1920 para o VIII Congresso Pan-Russo dos sovietes, onde tomaram a palavra e desenvolveram suas críticas à política bolchevique. No entanto, essa seria a última vez que eles se apresentariam perante os sovietes, circunstância justificada aos olhos de Lenin e Trotsky pelo desastre em que se encontrava o país ao sair da guerra civil, pela má reputação dos bolcheviques perante a “opinião pública”, pela consideração de que qualquer outra tendência “socialista” que não fosse bolchevique seria um instrumento, independentemente de quão conscientemente o assumisse, da restauração capitalista.

Alvin Wartel afirma que os mencheviques estavam recuperando terreno, apesar dos obstáculos que enfrentavam. Ainda em 1920, eles conseguiram eleger 45 delegados para o soviete de Moscou, 225 em Kharkov e importantes delegações em dezenas de sovietes. Em muitos sindicatos, os mencheviques e seus apoiadores “eram muito superiores ao grupo de comunistas sem popularidade que dominavam os órgãos sindicais e, em pelo menos três sindicatos, os mencheviques dominaram até 1921, apesar de todos os esforços comunistas para expulsá-los.

E o que era mais alarmante do ponto de vista comunista era que até os próprios comunistas estavam começando a ouvir com respeito, por volta de 1920, o que os mencheviques diziam. Tinham acabado os dias, como aconteceu em 1918 ou 1919, em que a palavra “liberdade” na boca de um menchevique era recebida pelos comunistas com assobios, vaias e gritos de “vergonha”. Aproximava-se rapidamente o momento em que seria necessário dar pleno reconhecimento legal aos partidos socialistas ou destruí-los” (Wartel, idem).

Em maio de 1921, o partido menchevique foi oficialmente proibido e tornou-se alvo de severas medidas de repressão. Em 1922, a “oposição leal” dos mencheviques havia deixado de existir.

Para entender o contexto, é interessante o que Eric Blanc aponta: “Em seu recente estudo sobre o socialismo libertário na Rússia, o historiador russo Vladimir Sapon conclui que a derrota da democracia soviética foi determinada, acima de tudo, pelo contexto objetivo catastrófico do final de 1918: ‘Essa ideia é confirmada pelo fato de que, nas áreas onde anarquistas e neopopulistas de esquerda consolidaram sua hegemonia política no período do primeiro governo soviético, eles não estavam menos inclinados à ditadura do partido do que os bolcheviques em toda a Rússia’” (“O stalinismo foi inevitável?”).

Mesmo com todos os riscos, porque os mencheviques não deixaram de ser uma corrente reformista e pró-burguesa, a proibição dos outros partidos soviéticos, assim como a das frações dentro do partido, custou muito caro, entre outras múltiplas razões porque serviu como antecedente e justificativa legal para Stalin agir com a “lei partidária” em mãos na hora de suprimir as oposições que vieram depois.

Acabou com o que restava da democracia socialista. E, com isso, começou-se a matar também a própria ditadura, enquanto ditadura do proletariado.

De Robespierre a Lenin

Para uma avaliação crítica do poder bolchevique, é interessante comparar Lenin com Robespierre. Este último presidiu, como é sabido, o ano mais conturbado da Revolução Francesa (1793-94). As diferenças são de qualidade. No caso de Robespierre, que foi condenado por toda a historiografia burguesa, trata-se do ponto mais alto da radicalização da Revolução Francesa. Sendo contrário à guerra, ele não poupou esforços para tomar as medidas extremas que ela exigia para defender a revolução contra os exércitos contrarrevolucionários da Santa Aliança.

Essas medidas incluíram o recrutamento em massa (que deu origem à criação dos exércitos modernos), o máximo dos preços do pão e dos alimentos (sob a pressão dos setores populares de Paris), a estatização dos bens eclesiásticos e dos emigrados contrarrevolucionários, a descristianização, além de tentar estabelecer uma religião laica.

No entanto, ele tomou essas medidas com os métodos burgueses do “bonapartismo revolucionário”, da substituição social dos explorados e oprimidos, e sem questionar a propriedade privada do ponto de vista dos princípios. Por isso, Trotsky caracterizou agudamente os jacobinos como “utopistas da igualdade com base na propriedade privada”.

Se Robespierre e Lenin podem ser assimilados como governos revolucionários em condições de guerra civil, aí termina a analogia. É que, como acabamos de apontar, o governo de Robespierre foi um governo “bonapartista revolucionário”. O de Lenin era de natureza social e política completamente diferente: uma ditadura proletária submetida às distorções das condições de uma guerra civil, agravadas pelo isolamento internacional a que a revolução acabou sendo submetida.

Toda revolução é uma guerra civil, pois trata-se de reconfigurar a propriedade, e a propriedade, juntamente com a vida, é o que mais custa ao homem”, dirá Mathiez, historiador clássico da Revolução Francesa. Ambos os governos revolucionários diferem por sua natureza de classe. Robespierre não teve escrúpulos em despachar os assuntos ao ritmo da guilhotina. Ele atacou pela esquerda, mas também pela direita. Ele até mesmo atacou primeiro a esquerda (livrando-se dos hebertistas e enragés, condenando à morte os principais líderes das massas populares parisienses). A lógica do “bonapartismo revolucionário” tinha a ver com um governo que, embora em determinados momentos se apoiasse nos “sans culottes” (“os sem propriedade”), governava em última instância em nome da burguesia.

O governo de Lenin tinha outra base social. Ele expressou a primeira experiência da classe trabalhadora no poder. A lógica de seu governo não era substitutiva: ou seja, em nome de uma classe proprietária ou de um novo setor privilegiado. Tratava-se de um governo dos trabalhadores, dos explorados e oprimidos. Um governo que apostou na direção coletiva de todos eles, quaisquer que fossem as deformações a que efetivamente se viu submetido em sua experiência.

É ilustrativa um fato relatado por Jean-Jaques Marie por ocasião do V Congresso dos sovietes, em 4 de julho de 1918. Trotsky lê um decreto que declara “fora da lei e passíveis de pena de morte” os elementos “descontrolados” que, na Ucrânia, cruzaram a linha de demarcação do acordo de Brest-Litovsk para reacender a guerra com os alemães. Os eseristas de esquerda que sustentam e até fomentam essas incursões irresponsáveis e ultraliberais (seu Comitê Central decidiu secretamente assassinar o embaixador da Alemanha para provocar a retomada da guerra!) ficam furiosos com ele e o chamam de “Kerensky, fuzilador, Bonaparte fracassado, Napoleão”. Trotsky responde que “se submeterá a qualquer decisão do congresso e a implementará, concordando ou não com ela”, refutando a acusação de bonapartismo (Marie 2009: 191).

Tanto Draper quanto Löwy insistem nessa diferenciação de princípios. Uma diferença que remete à impossibilidade de substituir as massas populares na hora da transformação social: “Em todo caso, uma coisa era clara: aos olhos [de Marx], 1793 não era de forma alguma um paradigma para a futura revolução proletária. Qualquer que fosse sua admiração pela grandeza histórica e pela energia revolucionária de um Robespierre ou de um Saint-Just, o jacobinismo é expressamente rejeitado como modelo ou fonte de inspiração da práxis revolucionária socialista. Isso aparece desde os primeiros textos comunistas de 1844, que opõem a emancipação social aos becos sem saída e às ilusões do voluntarismo político dos homens do terror” (Löwy 1985).

Traduzido: nosso modelo não é o governo pelo terror, a imposição violenta de novas relações sociais, a instauração de um poder minoritário contra a maioria da sociedade. É a ditadura do proletariado, na qual a maioria exerce o poder sobre a minoria. E que, como tal, organiza sua dominação sob a forma de um novo tipo de democracia: a democracia socialista.

Mandel lembra que Lenin se esforçou para não ter que recorrer ao terror no período imediatamente posterior a outubro. É sabido que os bolcheviques foram inicialmente benignos com os ex-dignitários do Governo Provisório e os principais generais czaristas (aos quais deixaram em liberdade sob a palavra de “não conspirar contra a revolução”).

Ao estudar a Revolução Francesa, aprecia-se a revolução burguesa por antonomásia, o que ela tem em comum e o que a diferencia da revolução proletária. Isso permite obter uma perspectiva histórica mais ampla para apreciar os eventos, não apenas do passado, mas também do futuro: “É somente em março de 1850, na circular à Liga dos Comunistas (…), que a expressão ‘revolução permanente’ ganha pela primeira vez o sentido que terá posteriormente ao longo do século XX (especialmente em Trotsky). Em sua nova concepção, a fórmula mantém de sua origem e do contexto histórico da Revolução Francesa, sobretudo (…), a ideia de uma progressão, de uma radicalização e de um aprofundamento ininterruptos da revolução. Reencontra-se também o aspecto da confrontação com a sociedade civil/burguesa, mas, contrariamente ao aspecto jacobino de 1793, ela já não é a obra terrorista (necessariamente destinada ao fracasso) da esfera política enquanto tal — que tenta em vão atacar a propriedade privada pela guilhotina — mas a partir da própria sociedade civil, sob a forma de revolução social (proletária)” (Lowy 1985). Ou seja, uma revolução social que se opõe à meramente “política” no sentido de que diz respeito às relações sociais e seu sujeito só pode ser uma ampla maioria social.

Este é o ângulo abordado por Trotsky quando denunciava o utopismo da “igualdade” jacobina. Se, para os jacobinos, a guilhotina se transformava em “um fim em si mesma” (o terror como momento de “autonomia do político” que entra em conflito violento com a sociedade burguesa por carecer de bases sociais de sustentação), o governo bolchevique, quaisquer que fossem as deformações a que foi submetido, foi uma ferramenta a serviço da emancipação histórica dos explorados e oprimidos: o governo mais progressista que já existiu na história da humanidade, sem esquecer a Comuna de Paris.

A Revolução Francesa – e o governo jacobino que a expressou em seu ponto mais alto – foi ainda a tragédia entre o “já não mais” de uma ordem monárquica caduca e o “ainda não” da revolução proletária (Bensaïd). Citando o grande historiador francês do século XIX, Michelet, o marxista francês afirma que os republicanos burgueses daquele século tinham atrás de si “o espectro das mil escolas que hoje chamamos de socialismo”: os enragés, os babuvistas e outros conspiradores pela igualdade que já carregavam “o germe obscuro de uma revolução desconhecida” (comunista).

Nesse equilíbrio catastrófico entre o “já não mais” de uma revolução burguesa que não podia ir mais longe e o “ainda não” da revolução proletária, o cesarismo jacobino acabaria por beneficiar a burguesia vitoriosa. Os virtuosos tinham cumprido o seu tempo. Eram bons para o exílio ou para a guilhotina (“La révolution francaise refoullé”). Bensaïd denuncia os “agiotas e especuladores dos bens nacionais” (estatizados) como os beneficiários do saque da antiga propriedade feudal (além dos serviços que prestaram à burguesia ascendente). Um importante representante desse setor foi Danton, cuja moral mundana era oposta ao ascetismo de Robespierre.

Também neste aspecto não resistem às comparações com os bolcheviques, cuja direção histórica nunca teve essas motivações. Outra coisa, é claro, foi a burocracia que cercou Stalin e toda a laia de carreiristas que inundaram o partido imediatamente após a guerra civil. Por isso, quando Simon Pirani fala de uma “nova elite bolchevique” a partir de 1920, a definição está a serviço de um engano consciente, um sinal de adaptação aos tempos anticomunistas que correm: deixa de lado qualquer barreira clara entre a velha guarda revolucionária e a nova elite.

Voltando a Bensaïd, ele traz à tona uma citação perspicaz do revolucionário norte-americano Thomas Paine perante a Convenção em 7 de julho de 1795: “Meu próprio julgamento me convenceu de que, se vocês mudarem a base da revolução dos princípios para a propriedade, extinguirão o fogo de todo o entusiasmo que até agora sustentou a revolução e colocarão em seu lugar nada mais do que o frio motivo do baixo interesse pessoal, a noite glacial da competição liberal generalizada de todos contra todos” (Bensaïd; idem). Uma afirmação brilhante por sua perspicácia.

Entre Robespierre e Lenin existem diferenças de princípios que não podem ser perdidas de vista, além das medidas excepcionais que os bolcheviques foram obrigados a tomar. Se Trotsky chegou a teorizar durante um período com base em uma lógica de substituição da classe operária, isso se deveu a um grave mal-entendido que a experiência histórica viria a corrigir; não a uma concepção que o caracterizasse (além dos deslizes administrativos que Lenin lhe atribuiria).

O próprio Trotsky havia descrito com precisão a lógica dessa substituição jacobina: “No final do século XVIII, houve na França uma revolução que foi chamada, corretamente, de ‘a grande Revolução’. Foi uma revolução burguesa. No decorrer de uma de suas fases, o poder caiu nas mãos dos jacobinos apoiados pelos ‘sans-culottes’, ou seja, os trabalhadores semiproletários das cidades, que interpuseram entre eles e os girondinos, o partido liberal da burguesia, os kadetes da época, o retângulo nítido da guilhotina. Foi apenas a ditadura dos jacobinos que deu à Revolução Francesa sua importância histórica, o que a tornou a “grande Revolução”.

No entanto, essa ditadura foi instaurada não apenas sem a burguesia, mas também contra ela e apesar dela. Robespierre, que não teve a oportunidade de se iniciar nas ideias de Plehanov, inverteu todas as leis da sociologia e, em vez de dar a mão aos girondinos, cortou-lhes a cabeça. Isso foi cruel, sem dúvida. Mas essa crueldade não impediu que a Revolução Francesa se tornasse ‘grande’ dentro dos limites de seu caráter burguês. Marx (…) disse que ‘o terrorismo francês em seu conjunto não foi mais do que a maneira plebeia de acabar com os inimigos da burguesia’. E, como essa burguesia temia seus métodos plebeus para acabar com os inimigos do povo, os jacobinos não apenas privaram a burguesia do poder, mas também aplicaram uma lei de ferro e sangue sempre que ela tentava deter ou “moderar” o trabalho dos jacobinos. Consequentemente, fica claro que os jacobinos levaram a cabo uma revolução burguesa sem a burguesia” (P. Broué, “Trotsky e a Revolução Francesa”). Essa mecânica não pode ser reproduzida no caso da revolução proletária, como ensinou a experiência do século XX.

Antoni Doménech insiste que a ditadura de Robespierre se considerava uma “ditadura fiduciária”, no sentido de emanada da Convenção, e não uma “ditadura soberana” emanada de si mesma, como erroneamente considera os bolcheviques. Se a distinção entre o caráter das ditaduras é interessante, apresentar os bolcheviques como “modelo” de “bonapartismo revolucionário” nos parece um disparate (em “A experiência bolchevique, a democracia e os críticos marxistas de seu tempo”).

Embora muitas vezes tenham confundido necessidade com virtude, tanto Lenin quanto, posteriormente, Trotsky foram adquirindo uma consciência cada vez mais aguda da impossibilidade de substituir as massas na revolução. Lenin, com a enorme sensibilidade política que o caracterizava, com o concreto que era seu pensamento, com suas profundas aspirações socialistas revolucionárias expressas em “O Estado e a Revolução”. Trotsky, com a última homenagem à revolução que presta em sua “História da Revolução Russa”, sem falar das muitas outras lições que tirou da experiência revolucionária e contrarrevolucionária.

O governo proletário nunca pode ser um “bonapartismo revolucionário”, porque isso significaria uma substituição duradoura da classe operária no poder. E a lógica da substituição política e social acaba levando a outro lado, que não é a consolidação da ditadura do proletariado. Daí que a experiência histórica tenha ensinado contra a assimilação mecânica entre o máximo expoente da revolução burguesa, Robespierre, e o máximo expoente da revolução proletária, Lenin.

Ditadura proletária e democracia socialista

As vicissitudes do novo poder proletário devem ser compreendidas sob a fórmula algébrica da ditadura proletária. Como apontou Lenin, essa fórmula implica uma combinação dialética entre uma democracia de novo tipo e uma ditadura de novo tipo (o que complexifica a simples identificação da ditadura proletária com a democracia socialista).

Na plena realização da ditadura proletária como autogoverno das massas, ambas as conotações devem ser sinônimas. Mas é um processo histórico complexo, entre outras coisas porque a elevação das massas às suas tarefas históricas implica uma maturação complexa, o que, juntamente com a ação da contrarrevolução (burguesa… e burocrática), faz parte das tensões que a ditadura do proletariado acarreta.

Como digressão, observemos que isso não significa cair no “modelo” burocrático zinovievista, pelo qual o governo proletário se tornaria uma espécie de “autoridade pedagógica” que deveria “guiar” as massas ignorantes que, por sua orfandade, por sua “incultura”, não poderiam tomar em suas mãos os destinos do país. Trotsky havia proposto que a base partidária deveria ter soberania, qualquer que fosse seu nível político-cultural (“Novo curso”).

Perder de vista a complexidade desse processo, muitos críticos argumentam que Lenin e Trotsky cometeram o erro de aceitar os termos do debate proposto por Kautsky (com quem polemizaram sobre a ditadura proletária): uma oposição abstrata entre ditadura e democracia. A própria Rosa Luxemburgo os acusava de terem esquecido que “a ditadura do proletariado é a democracia socialista”, o que, em termos gerais, como norma orientadora, é correto.

Sempre insistimos nessa tensão democrática: a necessidade absoluta da democracia socialista para que o proletariado possa exercer o poder. Um poder que só pode ser exercido coletivamente; democraticamente, portanto. No entanto, nos preocupa também evitar transmitir uma ideia ingênua da luta de classes. Menos ainda quando tudo se tensa em uma guerra civil: na luta mortal entre revolução e contrarrevolução. É nesse cenário que surge a problemática da ditadura proletária e a tendência que deve ser verificada, de se sobrepor à democracia socialista.

Na medida em que é uma democracia de novo tipo, a ditadura proletária deve tender a ser uma democracia socialista. Mas as coisas foram um pouco mais complexas sob o governo bolchevique, quando a maioria das tendências socialistas conciliadoras se colocaram, abertamente ou veladamente, do lado da contrarrevolução. Nessas condições, era muito difícil a existência de outras tendências socialistas além do partido bolchevique.

A única corrente que se manteve dentro de padrões mínimos não contrarrevolucionários foi a dos mencheviques internacionalistas de Martov.

Avrich concorda com Wartel no sentido de que os mencheviques – sobretudo os internacionalistas – tentaram manter-se no terreno de uma “oposição legal” ao governo bolchevique: “Em contraste com os Kadetes e os socialistas revolucionários, os mencheviques no exílio mantiveram-se afastados das conspirações antibolcheviques (…). Desde que Lenin e seus partidários tomaram o poder, os mencheviques agiram como um partido legal de oposição que tentava obter uma parte da autoridade política por meio de eleições livres e paritárias para a integração dos sovietes” (Avrich 1970:123). No caso dos SR, até mesmo sua ala esquerda se caracterizou por uma enorme irresponsabilidade.

Por sua vez, os anarquistas dividiram-se grosso modo em duas alas: uma que acabou por se aliar aos bolcheviques (como Victor Serge e tantos outros militantes anarquistas de renome) e outra que se aliou à oposição ao governo soviético (um arco-íris de posições que incluiu Nestor Makhno, notável líder rural ucraniano, que montou um Exército Negro que oscilou entre os Brancos e os Vermelhos, e que acabou sendo dispersado pelos bolcheviques).

Dessa forma, surgiu, insensivelmente, uma dinâmica de substituição de uma classe operária retraída, que perdia de vista seus interesses históricos em meio ao colapso das condições de existência. É interessante o que Kevin Murphy destaca sobre o “vai e vem” dos trabalhadores na guerra civil: o “rebote” entre seus interesses históricos e seu retraimento para os interesses imediatos em condições adversas, como identificando as dificuldades que envolve a ascensão do proletariado à classe histórica (Revolution and contrarrevolution in a metal factory).

Em outro lugar, apontamos que talvez seja inevitável alguma circunstância excepcional de substituição. Mas a experiência histórica demonstrou as consequências dramáticas de tal situação, o fato de que não existem vácuos na política: um governo não pode ficar no ar. E se a classe operária não estiver presente, outro setor social ocupa seu lugar (M. Lewin: “A última batalha de Lenin”).

Mesmo nas piores condições, nunca se deve perder de vista a tensão dialética para que a ditadura proletária não substitua a classe operária, que tende a se transformar em uma democracia socialista. O fato de que essa tensão entre os dois termos persista não deve levar à teorização de um impossível substitutismo social: “O erro fundamental de Trotsky foi o de ‘fazer da necessidade uma virtude’, teorizando como uma espécie de ‘lei’ do período de transição o que, na realidade, não passava de uma política dolorosa imposta pela situação presente” (Traverso). A perda de vista dessa perspectiva durante o que Mandel chamou de “anos fatídicos” de Lenin e Trotsky (1920-21) foi um erro, porque as questões não são apreciadas da mesma forma durante uma guerra civil e em tempos normais.

Foi um erro em que Trotsky caiu com sua tendência a resolver as coisas administrativamente (como Lenin apontou em seu testamento) e que lhe rendeu uma tremenda derrota política no debate sobre os sindicatos, o que o deixaria em má posição para a batalha que se aproximava contra a burocracia: “Até o estabelecimento de um regime socialista e seu funcionamento ‘normal’ – que Trotsky não esperava que ocorresse antes da próxima geração – ‘a transição deve ser assegurada por medidas de caráter coercitivo, ou seja, em última análise, pela força armada do Estado proletário’” (Broué, Trotsky: 206). Em um sentido semelhante, vale a pena apreciar a observação de Jean-Jaques Marie: “A função de comissário de Guerra que Trotsky desempenhará até janeiro de 1925 reestrutura sua personalidade e transforma o publicista militante e polemista em um organizador exigente e meticuloso (…). Seu cargo de comandante molda a imagem que os quadros do partido, militantes, soldados, trabalhadores ou camponeses têm dele, toda vez que modifica ou altera de forma duradoura seu comportamento e sua maneira de abordar os problemas” (Marie 2009: 173).

Mil e uma vezes Lenin e Trotsky repetiram que suas expectativas estavam voltadas para a expansão internacional da revolução. O não cumprimento dessa previsão foi o que pressionou todas as deformações que vieram depois, incluindo o surgimento do monstro burocrático.

Por isso mesmo, é preciso ressaltar novamente as consequências adversas deixadas pelas condições de “fortaleza sitiada” do poder bolchevique durante a guerra civil, onde se originaram muitas das práticas de “ordene e mande”, dos desenvolvimentos burocráticos, do “úkase” e da “disciplina na ação”, da centralização excessiva. Uma série de comportamentos militares que, por definição, admitem mais centralização e acabaram infectando o partido, facilitando as condições de legitimação para o comando burocrático do stalinismo: “Os três anos de guerra civil deixaram uma marca indelével no próprio governo soviético, em virtude do fato de que muitos dos administradores, uma camada considerável deles, haviam se acostumado a mandar e a exigir submissão incondicional às suas ordens” (Trotsky 1975: 262).

Bensaïd insiste, em “La violence dans la révolution”, que essas consequências adversas têm sido habitualmente subestimadas. Foram as circunstâncias da guerra civil que impuseram esse pesado fardo, e essas circunstâncias não devem ser teorizadas no sentido de que a ditadura do proletariado seja, necessariamente, um poder ditatorial, nem avaliadas, mecanicamente, como algo inevitável. Não é assim. A norma deve ser a tendência para a maior sobreposição possível entre a democracia socialista e a ditadura do proletariado. A realização consequente da ditadura do proletariado não apenas como “ditadura de novo tipo”, mas também como “democracia de novo tipo”.

Nesse sentido, parece claro que um ponto cego em Lenin (mesmo na batalha final contra a burocratização!) é que as instâncias da democracia sindical, política e do próprio aparato do Estado parecem confusas (Bensaïd). Parece-nos até que, ao tomar medidas que anularam a democracia socialista, Lenin tentou posteriormente resolver por uma via “não política” os enormes déficits democráticos que se multiplicavam no governo e no partido: reforçando erroneamente uma “Inspeção Operária e Camponesa” que já estava nas mãos de Stalin, ampliando os membros do Comitê Central com operários de tradição (em um Comitê Central no qual não podiam se formar agrupamentos)…

É paradoxal que também Lenin tenha recorrido a medidas administrativas para resolver os problemas da crescente burocratização do Estado e do partido. Expressão disso é sua proposta de reforçar a Inspeção Operária e Camponesa (Rabkrim), à frente da qual estava… Stalin. Trotsky apontaria com perspicácia que esse órgão não passava de um “poderoso fator de confusão e anarquia”, uma entidade na qual recairiam “homens afastados de toda atividade real, criativa e construtiva” (Broué, Trotsky: 232). Trotsky percebeu antes de Lenin como a infecção burocrática estava afetando não apenas o Estado, mas também o partido.

Lenin promoveu, em resumo, soluções “administrativas” para o que era um dramático problema político (e político-social!): o surgimento da burocracia. Um desenvolvimento que só poderia ser enfrentado apelando para uma ampliação da democracia socialista, não com seu cerceamento. Esse é o caminho que a Oposição de Esquerda acabaria por seguir, com Trotsky já mais claro, em termos gerais, sobre o rumo a tomar diante do problema inédito da burocratização da revolução, como veremos mais a frente.

Traduzido por Cecília Loures, de Jacobinos y bolcheviques en perspectivas comparadas

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