Apresentamos o subcapítulo 9.4 da obra de Roberto Sáenz “O marxismo e a transição socialista – Tomo I: Estado, poder e burocracia” – que está em processo de tradução e dentro de alguns meses será disponibilizada em português – por ocasião do aniversário de 71 anos do levante antiburocrático de Berlim, em 16 de junho de 1953. Movimento que começa com uma greve da construção civil no do dia seguinte e se generaliza por toda a RDA através de manifestações contra o governo burocrático de Walter Ulbricht, que apelou às tropas soviéticas para reprimir violentamente a sublevação qualificada pelo stalinismo como “contrarrevolucionária”.
Como se depreende do título, Berlim foi só o primeiro de uma série de “revoluções antiburocráticas” nos anos 50 e 60 do século XX, essas foram derrotadas por algumas contradições intrínsecas, mas foram realmente voltadas a uma perspectiva operária e socialista, diferentemente das “revoluções anticapitalistas” como as da China, Iugoslávia, Vietnã e Cuba.
Neste processo, autores marxistas antistalinistas de proa, como Kosik, Bloch, Rakovsky, Korsch, Naville, Dunayevskaya, Krausz e tantos outros, bem como o Grupo Praxis da Iugoslavia, cumpriram um papel importantíssimo. Produziram diversos textos que o “marxismo oficial” (academicamente chamado de “ocidental” ou para os mais stalinófilos de “ortodoxo”) tratou de estigmatizá-los como “agentes do imperialismo e da contrarrevolução” de “marxistas humanistas” e chamar as suas obras de portadoras de desvios idealistas ou neohegelianos; prática que vai na esteira da sentença de Zinoviev no V Congresso da III Internacional em 1924: “Não podemos tolerar, na nossa Internacional Comunista, a presença desse revisionismo teórico.”
Para muito além disso, e dentro do esforço teórico empreendido por Sáenz em seu livro, é inegável a necessidade do debate sobre as Revoluções do Século XX, seus elementos estruturais e seus legados, como parte da reconstrução do ideário socialista neste século. A queda do aparato mundial dos estados burocráticos nos anos 1990 relançam, ainda que por hora contraditoriamente – temos uma combinação de lutas, levantes e rebeliões sem a direção do estalinismo mas que ainda são limitadas pela crise de alternativa e de direção socialista -, a luta pela construção de um movimento socialista internacional. Assim, o estudo destes “levantes” antiburocráticos e de seus teóricos na obra “O marxismo e a transição socialista – Tomo I: Estado, poder e burocracia” é de fundamental importância para qualquer tipo de elaboração e construção partidária revolucionária para a época de guerras, crises e revoluções em curso.
Equipe de Redação
Esboço das revoluções antistalinistas do pós-guerra [1]
Por Roberto Sáenz
“[É necessário] em suma, fazer perguntas da ordem do porquê [i.e., dos fins, R.S.] e não apenas do como. É importante sublinhar que esta não é uma tendência em abstrato, mas dentro dos movimentos socialistas e comunistas; isto é, aceitar que na transição para o socialismo – em uma de suas muitas formas – questionar as escolhas que podem e devem ser feitas ao longo do caminho é uma pré-condição necessária para a construção de uma sociedade desejável e racional.” (E. P. Thompson, “Agency and Choice”)
Abordaremos agora a uma circunstância paradoxal no contexto do pós-guerra: as revoluções antistalinistas nos países da Europa de Leste. Faremos isso como um “esboço”, esperando que tenhamos tempo para um estudo mais detalhado.
O paradoxo dessas revoluções derrotadas é que elas tiveram um claro impulso socialista, ao contrário das anticapitalistas que analisamos anteriormente. De resto, não se há voltado o suficiente para extrair as lições crítico-estratégicas que deixaram: a circunstância original das revoluções contra o stalinismo, a densidade desse evento.
1- Revoluções políticas ou revoluções socialistas antiburocráticas?
Seus marcos mais importantes foram o levante operário em Berlim, em junho de 1953, que mostrou que o proletariado alemão não estava derrotado, algo incrível depois das dramáticas vicissitudes do nazismo – é preciso ter em mente que Berlim ainda estava destruída, pelos combates pela conquista da cidade entre o Exército Vermelho e o que restava da Wehrmacht em abril de 1945;[2] a Revolução Húngara de 1956, que dividiu águas do stalinismo no Ocidente, abrindo uma crise particularmente aguda no PCB britânico;[3] a “Primavera de Praga” em 1968, bem como as várias revoltas antiburocráticas na Polônia, com vários destaques atingindo seu ápice com o levante do Solidariedade em 1980/1. Esta, talvez, tenha sido a última revolução ou protorrevolução socialista do século 20, junto com as de Portugal em 1975 e do Irã em 1979. Não temos clareza sobre a revolução nicaraguense de 1979, embora ela soe mais como uma revolução anticapitalista frustrada pela falta de protagonismo operário e urbano e pelo freio produzido pelo sandinismo ao relegá-la a uma mera “revolução política”.
As correntes do trotskismo tradicional definiram esses levantes antistalinistas como “revoluções políticas”… Eles o fizeram de acordo com as definições clássicas de Trotsky no período entre guerras: na medida em que os capitalistas foram expropriados, eles consideravam esses Estados como “Estados operários”, onde os levantes apenas questionavam o regime político burocrático e não os próprios Estados erguidos nesses países no período pós-guerra. Estados que, a nosso ver, se tornaram burocráticos com conquistas sociais.
Aqui devemos levar em conta o caráter original desses processos, em dois sentidos. Primeiro, pelo fato de que, em todos os países do Leste Europeu, os lampejos revolucionários antinazistas que surgiram durante o processo de colapso do nazismo no final da guerra foram imediatamente esmagados pelo stalinismo (cf. Victor Artavia). Além disso, ao libertar esses países da bota de Hitler, o stalinismo ocupou militarmente essas nações contra a vontade de seus habitantes (Mandel). Isso aconteceu em toda a Europa Oriental, exceto na ex-Iugoslávia, onde o PCY sob o marechal Tito conseguiu libertar seu país do jugo fascista de maneira praticamente independente; foi isso que deu origem ao maior prestígio de Tito, sua insubordinação a Stalin e a consequente ruptura entre a ex-Iugoslávia e a URSS no final da década de 1940.[4]
No que diz respeito às revoltas revolucionárias do Leste Europeu, preferimos o termo revoluções antiburocráticas porque, contendo a conquista da expropriação da burguesia (uma conquista real, mesmo que tenha sido distorcida por cima),[5] foram revoluções políticas antiburocráticas com consequências econômicas e sociais, e não meras revoluções políticas strictu sensu como as considerações do trotskismo tradicional. Ocorre que deviam quebrar o Estado burocrático como um todo: retirar a burocracia do poder e substituí-la pelo poder da classe operária, além de tomar o controle dos meios de produção em suas mãos, e em seu sentido tradicional, uma revolução política não quebra o aparato estatal existente, apenas muda seu regime político.[6] “O escritor Tibor Déry declarou em 2 de julho de 1956 que ‘É hora de acabar com este estado de gendarmes e burocratas’; na mesma linha, a também escritora Judith Mariassy se manifestou em agosto, após ser agredida por denunciar os privilégios da burocracia, ao que argumentou que “a vergonha não está no fato de falar desses negócios de luxo e dessas casas cercadas de arame farpado. Está na própria existência destes negócios e destas moradias. Abolir privilégios e não se falará mais disso”. Igualmente categóricas foram as declarações de Gyula Hajdu, militante histórico com mais de cinquenta anos de experiência (…): “Como é que os dirigentes comunistas poderiam saber o que se passa? Eles nunca se misturam com os trabalhadores e as pessoas comuns, você não os encontra nos ônibus, porque todos eles têm suas lojas especiais; você não os encontra nos hospitais, porque eles têm sanatórios para eles’” (Broué, citado por Victor Artavia).
Além disso, o argumento de que, uma vez que a propriedade foi estatizada, tratava-se apenas de quebrar o regime político burocrático e que a revolução era, portanto, apenas “política”, ignora o fato de que, a nosso ver, não é o caráter da propriedade que define o caráter dos Estados não capitalistas. Lembremos o que apontamos sobre o fato de que a propriedade estatizada permanece “em disputa” na transição, na medida em que é uma categoria político-social-econômica, e sem romper o Estado burocrático é impossível para a classe operária se apropriar da propriedade e pôr fim aos mecanismos de exploração unilateral impostos pela burocracia. A burguesia havia sido expropriada e isso foi um avanço contraditório. Mas, para que essa propriedade fosse redirecionada na direção das necessidades dos trabalhadores e do povo, a revolução antiburocrática tinha que abrir passo rompendo o estado parasitário dos stalinistas: “De fato, imediatamente após a adoção dos planos de longo prazo, o aumento da produtividade tornou-se a palavra de ordem (…) no sistema das democracias populares. Mas não foi fácil convencer os trabalhadores de que os métodos que eram combatidos sob o capitalismo como métodos intensificados de exploração se tornaram positivos pelo simples fato de que a exploração dos capitalistas havia terminado, e que a classe operária, através do Partido Comunista, agora deveria aceitá-los. Mas, jogando todo o jogo do Estado-patrão, os trabalhadores já não os reconheciam como seus representantes, mas como meros agentes de gestão (Fejtö: 1952: 305/310). Fejtö acrescenta: “Na maioria das indústrias estatizadas, a administração estatal substitui os antigos proprietários privados. Nacionalização significa, portanto, estatização. Em seu discurso no V Congresso do CPY, Kardelj disse que “as empresas que passam para as mãos do Estado popular ainda não são do tipo socialista puro. As relações capitalistas de exploração foram abolidas, mas as formas capitalistas de trabalho continuarão a predominar” (ibid.: 157).
Por fim, Fejtö acrescenta que nesses Estados não capitalistas a autonomia da classe operária, com seu direito de controlar a gestão, foi varrida. É o Estado que deve ser dono de tudo, que deve regular a produção e a distribuição, de acordo com o plano (ibid.: 158).
O paradoxo do caso no contexto do pós-guerra e desses novos Estados não capitalistas dominados pelo stalinismo, é que essas revoluções, ainda que frustradas, foram, na verdade, revoluções operárias e socialistas, revoluções com impulso socialista como dissemos. E isso porque seus protagonistas: a classe operária, a juventude e uma certa parte da intelectualidade, ainda localizada à esquerda naquelas décadas, estavam realmente lutando para transformar seus Estados burocráticos em Estados operários em condições de democracia socialista. Os muitos que se preocuparam com o conteúdo emancipatório dessas revoluções o atribuíram ao campismo desqualificado e consideravam que o que estava acontecendo era obra do “imperialismo” e não uma experiência revolucionária original: o surgimento de verdadeiras revoluções socialistas com formas de duplo poder nos países burocráticos, onde o capitalismo havia sido expropriado, mas o poder não estava nas mãos da classe operária.[7]
O processo em si teve sua originalidade justamente pela retumbante centralidade da classe operária, algo que também aconteceu em outros países no pós-guerra. Foi o caso da Revolução Boliviana de 1952, outra grande revolução socialista histórica fracassada, cujo impacto universal foi menor porque terminou em derrota. Mas remete a outra linhagem no continente latino-americano que não a da Revolução Cubana de 1959. Esta última, uma imensa revolução anticapitalista e, no início, não stalinista, seguiu o mesmo padrão substituísta ao ser liderada por uma guerrilha revolucionária; a Revolução Cubana acabou sendo categoricamente não-socialista.[8]
Paradoxalmente, insistimos, muitas das revoluções do século 20 foram revoluções operárias e socialistas derrotadas, como a Revolução Alemã de 1918-23, a Revolução Espanhola de 1936-39 e as revoluções antiburocráticas nos países do pós-guerra do Leste Europeu, entre outras: ou seja, não só houve revoluções anticapitalistas no pós-guerra, mas o século 20 foi povoado por revoluções socialistas, frustradas em grande parte pela falta de direção socialista revolucionária. A obra destrutiva universal do stalinismo foi tão gigantesca que deixou nossa corrente histórica como uma minoria extrema, circunstância que governa até hoje, embora hoje por outros motivos: a falta de radicalização política das novas gerações e o rompimento do fio de continuidade com a autêntica tradição marxista.[9]
Assim, a narrativa segundo a qual se não se reconhece o caráter “socialista” das revoluções chinesa, cubana e vietnamita, apenas a Revolução Russa permanece como socialista, é falsa, porque o século passado foi povoado por revoluções socialistas, o problema é que a única que triunfou foi a Revolução Russa, o que é diferente. E isso remonta às lições estratégicas do século passado, aos problemas das relações entre massas, vanguarda, auto-organização e autoemancipação, e partido revolucionário; e ao sangue da revolução também.
De qualquer forma, o que precisa ser explicado não é sua “inexistência”, mas as complexidades envolvidas nesse tipo de revolução, além do problema muito real de que no primeiro pós-guerra o imperialismo conseguiu conter a Revolução Russa em suas fronteiras, derrotando a revolução europeia do início dos anos 1920. Ao final da Segunda Guerra Mundial – que combinou a guerra interimperialista, a guerra de libertação nacional e as revoluções anticapitalistas (Mandel) – o movimento operário foi burocratizado pelos dois inimigos históricos de sua autoemancipação: o stalinismo e a social-democracia, aos quais se pode acrescentar outra espécie: o nacionalismo burguês nos países do chamado “terceiro mundo”. São inimigos históricos dos quais devemos tirar lições críticas para a construção de nossos partidos revolucionários e correntes neste século 21, onde se reabriu a época revolucionária socialista.
As revoluções antiburocráticas do Leste Europeu mostraram que a classe operária estava começando a se recuperar dos desastres do nazismo e do stalinismo combinados após a Segunda Guerra Mundial. Uma recuperação que surpreende pela velocidade.[10]
O levante de Berlim, em junho de 1953, foi iniciado pelos operários da construção civil e seguido por metalúrgicos, contra normas trabalhistas extremamente exploradoras. Em sua marcha, arrasaram a sede da polícia secreta e do partido, e a mobilização se expandiu por toda a ex-RDA (lembre-se que a Alemanha foi dividida em duas, outra imensa traição histórica do stalinismo no final da Segunda Guerra Mundial, como disse Nahuel Moreno acertadamente).[11] Nessa mobilização desempenharam um papel de primeira ordem trabalhadores treinados no velho espírito do Partido Comunista e da Social-Democracia, e certamente alguns no socialismo revolucionário (trotskismo).
E não apenas isso: o élan da Revolução Russa ainda estava nas veias e na consciência das massas alemãs, razão pela qual a maioria da classe operária permaneceu socialista, pelo menos em termos gerais, e uma parte importante da intelectualidade daqueles países. Veja a enorme sensibilidade socialista de John Berger, conhecido autor especializado em arte, em relação à Primavera de Praga: “Agosto de 1968. Estações de rádio subterrâneas ainda estão transmitindo na Tchecoslováquia enquanto escrevo estas páginas. A liberdade de expressão foi central na situação recente do país. E não foi, como hipocritamente afirma a social-democracia burguesa, porque essa liberdade tem um valor absoluto em todas as circunstâncias, mas porque nos últimos quatro meses tem sido para os checoslovacos o meio mais direto de recuperar o sentido de poder político do povo. Foi nas obras de Kafka que se encontrou o vocabulário preciso para definir os aspectos mais negativos da experiência nacional nos quinze anos anteriores: a experiência da repressão policial maciça e da burocratização do pensamento, da vida social, do planejamento nacional, da política e da moral” (Berger 2017: 207-208).
Em nenhum caso havia partidos ou correntes revolucionárias organizadas de magnitude, embora houvesse muitos grupos de vanguarda (ou seja, da esquerda antistalinista). Isso, é claro, se deveu ao trabalho destrutivo combinado do nazismo e do stalinismo, que demoliram a vanguarda socialista em seus fundamentos.[12] Portanto, eles não tinham uma direção política suficientemente madura.
No entanto, a riqueza de sua experiência e as lições legadas por esses processos revolucionários ainda precisam ser estudadas em profundidade: foi o primeiro caso histórico de revoluções contra a burocracia stalinista no terreno conquistado com a expropriação dos capitalistas, algo que não aconteceu nem mesmo na China[13]. nem em Cuba, nem no Vietnam e que, repetimos, não foi objeto de reflexão suficiente. “(…) é compreensível a caracterização de Lázló Nagy (historiador suíço-húngaro especializado em democracias populares) quando aponta que em 1948 se impôs o domínio da psicopatologia típica de uma história kafkiana, onde de tempos em tempos se organizava a distribuição dos papéis de juiz, réus e testemunhas, que respondia a um plano preconcebido do stalinismo de impor seu controle absoluto sobre os partidos comunistas e a sociedade civil anteriormente à realização de expropriações a serviço da burocracia: “O terror não foi a consequência fortuita e inevitável da aplicação da coletivização e do planejamento, o estabelecimento do poder absoluto do Partido Comunista precedeu a implementação do ‘projeto socialista’ [as aspas são acrescentadas por nós]” (Cf. Víctor Artavia, “Democracias populares y resistencia obrera: una aproximación histórica a los Estados burocráticos del Glacis (1945-1956)”.
Da citação acima fica claro que essas medidas foram conscientemente despidas de qualquer conteúdo emancipatório, qualquer aspecto que pudesse ir além do monopólio burocrático.
A classe operária desses países fez tudo o que pôde: criou organismos de duplo poder, escreveu manifestos e programas, vinculou-se a uma intelligentsia socialista antistalinista etc. Houve um ponto alto quando o famoso discurso secreto de Nikita Kruschev contra o “culto à personalidade” de Stalin no 20º Congresso do PCUS (25 de fevereiro de 1956), o que não o impediu de meses depois esmagar a sangue e fogo a Revolução Húngara…
Como digressão, ressaltemos que o discurso, segundo a análise clássica, expressava uma espécie de “autorreforma” da burocracia para parar de matar uns aos outros. Longe das expectativas, não teve mais consequências do que isso, nem inaugurou um período de liberdades democráticas.[14] No entanto, como o discurso incluía uma série de denúncias corretas contra Stalin, autores como Althusser sempre o consideraram uma “afronta” à causa do socialismo e um “giro social-democrata”, coisa que não foi, tratava-se simplesmente da burocracia afrouxando a corda diante da figura de um Stalin já morto: “(…) fato de que não é admissível e que é estranho ao espírito do marxismo-leninismo elevar uma pessoa a um super-homem, dotado de características sobrenaturais semelhantes às de um deus. A um homem dessa natureza deve ser dotado de conhecimento inesgotável, de visão extraordinária, de um poder de pensamento que tudo prevê, e de um comportamento infalível. Cabe-nos considerar como o culto à pessoa de Stalin cresceu gradualmente, um culto que a certa altura se tornou a fonte de uma série de perversões excessivamente graves dos princípios partidários, da democracia partidária e da legalidade revolucionária” (Khrushchev 1959).
A posição do filósofo francês, como em tudo, era um taparabo do pior do stalinismo e do próprio Stalin.[15] Isso é de alguma importância, porque certas correntes do trotskismo defendem Althusser e seu “anti-humanismo”, sem ver que o humanismo socialista nos países do Leste Europeu, em muitos casos, desempenhou um papel revolucionário pela esquerda (cf. nosso “Althusser, filósofo del estalinismo tardío “).
Por outro lado, deve-se notar que na URSS praticamente não houve levantes antiburocráticos no pós-guerra, exceto aqueles em torno da queda do Muro de Berlim e da dissolução da URSS, mas esses levantes, combinados com as alas restauracionistas da burocracia, não foram anticapitalistas como os processos das décadas anteriores no Leste Europeu.
É claro que, se nas décadas imediatas do pós-guerra não houve revoltas operárias ou estudantis na URSS, é porque a derrota histórica do proletariado na década de 1930 não havia sido superada (uma hipoteca que dura até hoje devido à sua profundidade!). A única grande revolta operária foi o massacre de Novochercasc em 2 de junho de 1962, quando o Exército Vermelho e agentes da polícia secreta dispararam contra trabalhadores desarmados. Os trabalhadores fizeram uma greve na fábrica de construção de locomotivas S.M. Budyonny. A greve foi provocada pelo descontentamento com o aumento das cotas de produção, coincidindo com o aumento nacional dos preços dos laticínios e da carne, e é claro que essa dura repressão teve um caráter preventivo e exemplar para que nenhum outro setor operário na URSS seguisse o exemplo.
Assim, a ideia de que a derrota do proletariado russo veio apenas com a restauração capitalista na URSS a partir de 1991 é um tanto obtusa. A realidade é bem diferente: a classe operária havia sido derrotada desde a década de 1930 e nunca conseguiu se recuperar daquele tremendo golpe desferido pelo stalinismo. Por outro lado, o triunfo na Segunda Guerra Mundial sobre o nazismo, que foi um feito popular “soviético”, parecia abrir as possibilidades para uma liberalização do regime, mas Stalin logo se encarregou de “fechar o grifo” com uma nova rodada de expurgos e medidas bestiais, como enviar por dez anos para “campos de reeducação” os soldados do Exército Vermelho que mal sobreviveram ao cativeiro nas mãos dos nazistas. O caráter destrutivo do stalinismo na URSS era tão imenso que, invariavelmente, ao que recorria era apoliticismo ou, em todo caso, a uma consciência nacionalista reacionária de grande poder, à restauração da Grande Rússia dos czares, passando por uma reivindicação de Stalin e uma rejeição fechada a Lênin!, na medida em que Putin e as outras autoridades da Rússia atual veem em Stalin um “estadista” Russófilo.
2- A renovação do marxismo no calor das revoluções antiburocráticas
Nese sentido voltaremos aqui às “Epístolas aos Filisteus” de E.P. Thompson (1957). Thompson claramente se demarca dos humanistas social-democratas e defende o humanismo socialista como antídoto ao stalinismo: “Os conflitos que amadureceram dentro do mundo comunista em 1956 são certamente suficientes para derrubar o velho quadro simplista. Não é de todo bom continuar a pôr de lado todos os fenómenos contraditórios das sociedades lideradas pelos comunistas (…) é preciso apropriar-se do sentido profundo desses fenómenos (…) O que Marx e Engels afirmaram, e o que devemos reafirmar, são as potencialidades revolucionárias dos seres humanos. Temos de recuperar esse entendimento, porque se não o tivermos, nunca teremos a coragem de concretizar o potencial. Tenho a percepção de que o ser humano está na fronteira onde termina a pré-história e começa a história consciente. Precisamos de todos os nossos nervos se quisermos atravessar esta fronteira. Não acho que isso implique uma visão utópica da “perfectibilidade humana”. Uma sociedade sem oposições de classe não será uma sociedade sem inúmeros atritos de todos os tipos. Não libertará os seres humanos de assumir responsabilidades coletivas e individuais, de agir e fazer escolhas em busca de uma “vida melhor”” (Thompson 1957).[16]
Voltando ao nosso argumento, um conjunto de desdobramentos à esquerda entre as massas trabalhadoras, a intelectualidade e a juventude foram inextricavelmente combinados, bem como um jogo desde cima de uma burocracia “reformista” que, em sua maioria, questionou a gestão stalinista pela direita, buscando introduzir reformas pró-mercado, mas muito poucas reformas democráticas reais. O processo como um todo foi marcado por contradições: muitos setores se posicionaram contra essas revoluções porque supostamente “faziam o jogo do imperialismo”, embora houvesse setores do trotskismo que – essa é a sua honra no meio da confusão – se mantiveram defendendo-as incondicionalmente para além de todos os seus limites e contradições: “Em muitas partes do país [Tchecoslováquia], os operários se ofereceram para trabalhar aos sábados sem remuneração para contribuir com a economia nacional. Aqueles para quem, alguns meses antes, o ideal maior era uma sociedade de consumo, ofereciam dinheiro e ouro para ajudar a salvar a economia nacional. (Um gesto ingênuo do ponto de vista econômico, mas muito significativo ideologicamente.) Vi massas de operários nas ruas de Praga, com os rostos iluminados por um óbvio sentimento de oportunidade e satisfação históricas. Tal atmosfera estava destinada a ser de curta duração. Mas foi uma indicação inesquecível do potencial das pessoas até então inexplorado: a velocidade com que se pode vencer a desmoralização e a corrupção.” (Berger 2017: 214).[17]
É interessante notar aqui que a crítica às revoluções antistalinistas era tanto sobre a falta de liberdades democráticas e organização independente das e dos trabalhadores, quanto sobre a falta de controle da produção e os desastres do planejamento e da exploração stalinistas, ou seja, uma revolução política e social como dissemos: “O poder e a simultânea inutilidade da burocracia tornavam-se mais evidentes na teoria e na prática do planejamento econômico. A Checoslováquia é, em termos de população, o terceiro maior produtor de cimento do mundo e, no entanto, há anos que é impossível para qualquer checoslovaco comprar um saco de cimento no mercado legal para reparar um telhado ou construir uma parede. Um grande laminador metalúrgico produzia chapas muito grossas para uso, então elas eram imediatamente compradas como sucata para refundi-las. Uma fábrica de pregos em Praga tinha que cumprir uma cota anual de várias toneladas, e a maneira mais simples de conseguir isso era fazer pregos enormes de quinze centímetros. O resultado foi que nunca houve pregos pequenos no mercado. O valor do estoque de bens invendáveis acumulado hoje na Tchecoslováquia é de duzentos bilhões de coroas” (ibid.: 209).[18]
Também é importante considerar que um grupo de importantes intelectuais e filósofos marxistas se destacou no Leste Europeu, geralmente esquecido pelo chamado “marxismo ocidental”… Há correntes do trotskismo que os descartam como “marxistas humanistas” ou os ignoram diretamente, o que constitui uma operação de ocultação “stalinófila” que, ao mesmo tempo, priva a diversidade dos “mil e um marxismos” da riqueza de uma reflexão levada adiante sob os regimes stalinistas: uma contribuição estratégica para o relançamento da revolução socialista em nosso século. Parte disso é a criação na Hungria do conhecido Círculo Petöfi, onde um grupo de intelectuais se reuniu com jovens e trabalhadores, que além de discutir os desdobramentos políticos da época, discutiram obras de Marx como os Manuscritos Econômico-Filosóficos (hoje conhecidos como Manuscritos de Paris).[19]
Por isso, em nosso trabalho tentamos homenageá-los resgatando-os, bem como a uma série de intelectuais marxistas no Ocidente que não são ensinados nas universidades, onde o “marxismo” é representado por autores como Althusser, Poulantzas, Negri, Foucault e alguns outros com raízes estruturalistas ou pós-estruturalistas, mas em nenhum caso antistalinistas. Autores que têm seu valor, mas que em nossa opinião não alcançam a riqueza daqueles que estamos nomeando (e muito menos dos autores marxistas antistalinistas!).
Por exemplo, de um autor que citamos profusamente, Karel Kosik, sua obra Dialética do Concreto é a única conhecida, simplesmente porque o resto de sua obra foi sequestrada pelos serviços de inteligência da antiga Tchecoslováquia na década de 1970 e eliminada (nunca foi devolvida ao autor, que não a reescreveu; Kosik estava prestes a ir para a cadeia). Note-se, de passagem, que Kosik nunca foi para o campo pró-capitalista (pró-mercado), como fizeram outros intelectuais desmoralizados nos países do Oriente. É o caso de Agnes Heller (da escola húngara de Georg Lukács), que foi morar nos Estados Unidos e migrou para o liberalismo, e tantas outras. O mesmo aconteceu com vários membros do importante grupo da revista iugoslava Praxis, como Mihailo Markovic, revista que, sob a pressão de sua proibição, em 1975, levou à dissolução de seu grupo editorial. De qualquer forma, em seu “período de ouro” marxista, eles deram importantes contribuições pela esquerda e realizaram um encontro anual de marxistas antistalinistas entre 1965 e 1974, com a participação de vários marxistas do Ocidente (os encontros foram realizados na ilha de Korcula, na Croácia).[20]
Os filósofos desse grupo, socialistas humanistas, criticavam majoritariamente pela esquerda o regime de Tito (criticavam o regime fragmentário de autogestão e o monopólio do poder pelo PCY): “Os mecanismos de competição e ‘empreendedorismo’ orientavam os trabalhadores para o ‘egoísmo grupal’ (…) o que deixou a classe operária privada da solidariedade de classe elementar e da resistência de classe à exploração do trabalho (…). A classe operária é atomizada, fechada dentro dos muros das fábricas ou das instituições individuais esses muros caracterizam-se pela antiga estratificação que assegura intacto o poder social concentrado no topo (…)” (Miguel 2018).[21] E acrescentam: “Stojanovic adverte sobre o fato de que a civilização capitalista ainda dita nossa estrutura de necessidades e consumo (…) e isso levou à confusão sobre os próprios critérios para definir o socialismo. Com isso, o conceito de padrão de vida, por exemplo, é cada vez mais reduzido a um padrão material, em vez de ser visto como um padrão humano” (idem). Ao mesmo tempo, em que o grupo criticava o localismo ou a mera descentralização econômica como “anarcoliberal” ou “proudhoniano”. Logicamente, a resposta da burocracia, na boca de Kardelj (um funcionário muito importante do regime, de certa forma o segundo no comando de Tito), apelará para o argumento objetivista hackeado de que a Praxis questionava “as leis objetivas da vida social” e proclamava “uma mistura alquímista de verdades eternas abstratas sobre a humanidade e a liberdade” (idem).
Do ponto de vista do processo revolucionário antiburocrático, vale destacar a conexão da Primavera de Praga em geral e do levante estudantil de meados de 1968 na Iugoslávia em particular, com o Maio francês: em 2 de junho de 1968, houve uma forte repressão ao movimento estudantil que deu origem a uma série de ocupações de faculdades com demandas sobre condições de vida e emprego.
Nessas condições, não é por acaso que a Praxis foi acusada de “trotskista”, acusação dirigida simultaneamente a alunos e professores, denunciando que vários deles “estiveram em contato com o comitê para a reconstrução da IV Internacional e com o grupo trotskista italiano Il Manifesto” (idem).[22]
Outros pensadores antistalinistas na Europa Oriental são o filósofo marxista Ernst Bloch, natural da Alemanha Oriental, antiga RDA, exilado na década de 1960 na Alemanha Ocidental por causa da censura de sua obra O Princípio da Esperança;[23] Itszván Mészáros, de origem húngara e filho de diplomatas de alto escalão do regime stalinista; do historiador lituano Moshe Lewin; da filósofa americana, também, de origem lituana e que foi secretária de Trotsky, Raya Dunayevskaya; do filósofo russo Evald Ilyenkov e outros, além de figuras importantes do trotskismo que, mesmo com sua idade avançada, continuam a produzir e contribuir para desvendar o enigma dessas sociedades, a que nos referimos neste trabalho. Um grupo de intelectuais que deram sua contribuição para a renovação do marxismo em uma chave antistalinista e que, em geral, cobrem as fileiras dos marxistas negados ou esquecidos na academia.
3- O giro à direita dos anos 80
Por outro lado, é inegável que, após a derrota dessas revoluções, algumas esmagadas por tanques stalinistas ou golpes de Estado militares como o do general Jaruselsky na Polônia no final de 1981, a situação política nesses países girou para a direita. Isso possibilitou que os levantes antiburocráticos – mas não anticapitalistas – de 1989 e a queda do Muro de Berlim acabassem sendo redirecionados para a restauração capitalista.
O “buraco negro” histórico do ponto de vista socialista que continuam a constituir países como a atual Rússia, Ucrânia, Polônia, Hungria, Estados Bálticos etc., é evidente que tem a ver com o legado maldito do stalinismo e a crise da alternativa socialista deixada por sua experiência na classe operária mundial (crise de alternativas que persiste até hoje! mas sobrepondo-se ao reinício da experiência histórica vivida!): “(…) a necessidade imediata [naqueles países. RS] era reativar e repolitizar os cidadãos, oferecendo-lhes responsabilidades políticas. Daí o papel fundamental da liberdade de expressão em todos os setores. Qualquer coisa aquém desse mínimo nada mais seria do que transformar um autoritarismo implacável em um autoritarismo um pouco mais benigno. Era necessário que as pessoas começassem a tomar conta do que havia sido construído em seu nome, a tomar posse do conteúdo das formas socialistas, umas formas rígidas e distorcidas” (Berger 2017: 213).
A médio prazo, a queda do stalinismo reabriu a autêntica perspectiva socialista, como apontamos nos textos fundadores de nossa corrente (cf. Construir otro futuro. Aportar al relanzamiento de la batalla por el socialismo). Embora tenham se passado quarenta anos desde a queda do stalinismo, continuamos a nos opor aos autores e correntes que avaliam conservadoramente esse evento e o consideram uma “derrota histórica”. De qualquer forma, como já apontamos, especialmente para a ex-URSS, essa derrota histórica já havia sido consumada na década de 1930, embora continue mascarada pelo Estado burocrático com resquícios da revolução. Uma hipoteca que infelizmente não pôde ser levantada devido à derrota das revoluções socialistas antiburocráticas no Leste Europeu, derrotas que, evidentemente, a burocracia infligiu para que a classe operária da URSS não se revoltasse. Se uma crise da alternativa socialista, e da classe operária na autopercepção de seu poder social, persiste em escala global, devemos isso ao stalinismo e, em parte, também à social-democracia, seu gêmeo “democratizante”.
O papel da social-democracia foi criminoso de 1914 até os dias atuais. Uma social-democracia que se tornou social-liberal, passando abertamente para a ordem burguesa.[24] István Mészáros faz um retrato preciso disso em sua obra Para além do Capital, onde aponta que um ponto-chave enquanto burocracia sempre foi separar o reivindicativo do político-global (corporativismo).
No entanto, o capitalismo do século 21 é tão bárbaro e voraz que empurra materialmente para uma polarização extrema, para a reabertura da época de crises, guerras, revoluções e barbárie e reação, uma reabertura que certamente levará, em algum momento do caminho, a uma radicalização política pela esquerda das novas gerações, retomando as tradições revolucionárias do século passado como um todo. Nesse sentido, quando esta obra é publicada, estamos imersos em um processo simultâneo de retomada da experiência histórica das novas gerações exploradas e oprimidas. Isso certamente criará – já está fazendo isso – a fermentação das novas gerações de operários e estudantes para construir fortes partidos revolucionários de combate.
É um facto que este processo vem de longa data, e por várias razões. Entre elas estão o “fracasso do socialismo”, a reestruturação do mundo do trabalho, a pandemia etc., questões que não podemos desenvolver neste trabalho e que se manifestam na ingenuidade – por assim dizer – dessas novas gerações operárias e estudantis, de ecologistas, de defensores da Palestina e do movimento de mulheres e LGBTT. No entanto, como apontamos, à medida que os eventos ocorrem, as experiências se acumulam e os desdobramentos adquirem elementos de radicalização que, se extremos, darão origem às novas revoluções socialistas no século XXI: “(…) Com o colapso do stalinismo, a possibilidade da luta pela perspectiva genuína do socialismo foi reaberta. Esse desafio deve ser colocado no contexto do caráter cada vez mais agressivo, parasitário e predatório que o capitalismo globalizado vem assumindo, gerando repetidas manifestações de resistência e de ação direta. Com esta edição iniciamos a publicação da coletânea Socialismo ou Barbárie (…) Esperamos que seja uma contribuição para o esforço de milhares (…) ao redor do mundo para convergir em uma nova síntese de experiências e tradições do marxismo revolucionário, para a reabertura de uma perspectiva de emancipação social que confronte a realidade cada vez mais bárbara do capitalismo atual” (Sáenz 1999).
Nesse contexto, é também fato que estamos vivendo uma renovação revolucionária do marxismo em uma chave antistalinista e, em vários casos, antirreformista (esta última é um pouco mais difícil porque o reformismo continua a reinar, ainda que defensivamente, na vanguarda internacional de massas). Mas é fato que, em meio ao avanço da extrema direita internacional, o marxismo ganha um novo lugar, mais ofensivo. Há uma nova onda de reformulações críticas do nosso tempo, uma safra de novos autores (muitos jovens, outros não) que fazem parte dessa emocionante renovação do marxismo e do marxismo revolucionário. Digamos que esta obra em dois volumes visa contribuir para esse renascimento revolucionário socialista, antistalinista e antirreformista. Porque não há como empregar a força histórica da classe operária e colocar o marxismo revolucionário na ofensiva sem passar por uma avaliação implacável das lições deixadas pelo século 20.
Bibliografia
Anne Applebaum, Rideau de fer. L’Europe de l’Est écrassé 1944-1956, Gallimard, Francia, 2012.
Victor Artavia, “Democracias populares y resistencia obrera: una aproximación histórica a los Estados burocráticos del Glacis” (1945-1956).
John Berger, La apariencia de las cosas. Ensayos y artículos escogidos, GG, Barcelona, 2014.
R.J. Crampton, The Balkans since the Second World War, Longman, Gran Bretaña, 2002.
Isaac Deutscher, La década de Kruschev, Alianza Editorial, 1969.
Eric Hobsbawm, Historia del siglo XX, Crítica, Barcelona, 1995.
Nikita Kruschev, Informe secreto al XX Congreso del PCUS, 25 de febrero de 1959.
Ernest Mandel, El poder y el dinero, Siglo XXI Editores.
Sinuê Neckel Miguel, “Grupo Praxis: o impacto político da crítica humanista marxista na Iugoslávia”, Tempos Históricos, Volumen 22, 2º semestre de 2018.
E.P. Thompson, “Socialism and the intellectuals”, Universities & Left Review, primavera 1957, Vol. I, Nº 1.
-“Agency and choise, I. A reply to criticism”, The New Reasoner 5, verano 1958.
Roberto Sáenz, Marcelo Yunes y Antonio Soto, “Construir otro futuro. Aportar al relanzamiento de la batalla por el socialismo”, Colección Socialismo o Barbarie, Editorial Antídoto, 2000.
NOTAS:
[1] É claro que estamos nos referindo às revoluções antiburocráticas das primeiras décadas do pós-guerra e não ao processo de queda do Muro de Berlim em 1989, que teve um caráter completamente diferente e que não abordamos nesta obra.
[2] Bombardeios como o da cidade de Dresden, na Alemanha Oriental, pelos Aliados (EUA e Grã-Bretanha), uma cidade operária por excelência, contribuíram não apenas para a derrota política, mas para a destruição física da classe operária alemã (Moreno). Daí o fato marcante de que em Berlim o levante operário mostrou que, mesmo em circunstâncias extremas, a classe operária pode levantar a cabeça – além disso, o levante berlinense rapidamente se espalhou para o resto do país. Uma lição importante para quem invariavelmente analisa as coisas de forma muito cinzenta, perdendo de vista o outro lado dialético dos processos: os lampejos da vida que se apresentam mesmo nas circunstâncias mais duras.
[3] O prestigiado grupo de historiadores do PCG, que notoriamente incluía E.P. Thompson, entre outros, rompeu com o partido por causa da invasão de Budapeste por tanques russos. Thompson escreveu uma “Epístolas aos filisteus” de enorme valor humanista, antistalinista e socialista, embora injustamente sectária com Trotsky. Voltaremos a essas cartas.
Por outro lado, deve-se notar que o único historiador de destaque que permaneceu nas fileiras do PCG foi Eric Hobsbawm, como pode ser visto em seu materialismo economicista e em sua reivindicação –aggiornada – do stalinismo, bem como seu pessimismo histórico, até sua última obra, História do Século XX : “Stalin, que presidiu a idade do ferro da URSS (…) foi um autocrata de excepcional ferocidade, crueldade e falta de escrúpulos. No entanto, qualquer política de modernização acelerada da URSS, nas circunstâncias da época, teria sido necessariamente desapiedada, porque tinha que ser imposta contra a maioria da população, que estava condenada a grandes sacrifícios e a impostos em grande parte através da coerção. A economia gerida centralmente, responsável por levar a cabo essa ofensiva industrializante através dos “planos”, estava mais próxima de uma operação militar do que de um empreendimento econômico. Por mais difícil que seja acreditar (…) o sistema stalinista, que mais uma vez transformou os camponeses em servos e tornou partes importantes da economia dependentes de uma força de trabalho reclusa de quatro a treze milhões de pessoas (os gulags) (…), quase certamente teve apoio substancial, embora não entre os camponeses” (1995: (pág. 380).
Esta última afirmação é discutível. Bensaïd afirma algo semelhante em alguns de seus escritos, mas as circunstâncias eram muito mais contraditórias, até pelo fato de que os Grandes Expurgos do final da década de 1930 transformaram a URSS e os países em sua órbita em sociedades de medo e denúncia permanente. Vasily Grossman afirma que as circunstâncias da guerra mundial afrouxaram o controle de ferro do stalinismo por um tempo, gerando ilusões de liberalização política, mas com o fim da guerra foi reafirmado o domínio burocrático férreo – que foi, juntamente com as cotas de produção exploradoras – o que gerou as repetidas explosões antistalinistas no Leste Europeu.
[4] Isso não significou que Tito girou à esquerda, mas permaneceu em uma posição equidistante entre o Ocidente e a URSS, ele permitiu que experiências limitadas de autogestão dos trabalhadores funcionassem, mas nunca cedeu o domínio burocrático de ferro sobre o Estado iugoslavo como um todo. Assim, não deixou de ser mais uma variante do Estado burocrático com resquícios das conquistas da derrota do fascismo e da expropriação anticapitalista. A emancipação do nazismo foi um enorme feito revolucionário contra o capitalismo, mas sem o socialismo. Nesse sentido, está muito mais relacionado às revoluções anticapitalistas da China, Cuba e Vietnã do que ao restante dos países das Glacis, onde não houve revolução, nem “ativa” nem “passiva” (em nossa concepção, falar dos países do Leste Europeu como “revoluções socialistas passivas”, como fazem alguns autores, é uma contradição nos termos).
Por outro lado, R.J. Crampton nos lembra que a ex-Iugoslávia dos anos 1940 foi uma das sociedades mais agrárias dos Bálcãs e do Leste Europeu (embora os países balcânicos estejam em uma categoria geográfica diferente das dos Glacis): “(…) no entanto, os próprios partidos comunistas dominantes, incluindo o da Iugoslávia, aplicaram a tarefa de reconstrução econômica e social [do pós-guerra]: impuseram a revolução por cima. Os antigos membros do partido mostravam uma simpatia particular pelo descontentamento social, tinham a preocupação particular com os deserdados e despossuídos [isto é, os desprivilegiados] que os tinham originalmente trazido para o partido. Muitos desses velhos companheiros [foram expurgados] (…) Expurgos [no partido] eram necessários para conter o descontentamento que a ‘revolução por cima’ estava gerando e para imunizar o corpo partidário para o qual seria uma tarefa desagradável” (Crampton: 2022: 108).
[5] Muitas dessas expropriações foram feitas com a justificativa nacionalista inicial de expropriação de propriedade alemã (Fejtö).
[6] A esse respeito e em outro contexto, Nahuel Moreno introduziu nas fileiras do antigo MAS uma confusão monumental com sua “teoria” da “revolução democrática”.
[7] Outro problema aqui é que a pátina do humanismo que esses processos tinham foi interpretada como se fosse um aggiornamiento social-democrata. Mas se tal aggiornamento foi tentado por cima, perder de vista o conteúdo operário e socialista do humanismo que emergiu de baixo é uma obra de colossal desorientação política e intelectual.
[8] Veja-se, a esse respeito, o trabalho dos companheiros Roberto Ramírez e Marcelo Yunes sobre o caso cubano. E os trabalhos de Richard Gott e Samuel Farber, entre outros, muito bem documentados.
[9] Um fio de continuidade que o trotskismo, a partir da obra de Trotsky e das mais diversas correntes que constituem o “arquipélago de um e mil marxismos” de que fala Bensaïd, conseguiu de alguma forma assegurar. Os fatos são teimosos: não há outra corrente socialista revolucionária no mundo que não seja a do trotskismo em suas várias variantes: nem o luxemburguismo, nem o gramscismo, nem o conselhismo etc., estão organizados em partidos e correntes internacionais.
[10] Não podemos tratar desse processo neste trabalho.
[11] Isso tornou a avaliação dos eventos após a queda do Muro de Berlim em 1989 mais complexa. Porque o que começou como um movimento progressista pela reunificação da Alemanha pela esquerda terminou na restauração capitalista. Houve correntes que se posicionaram de forma objetivista diante desse acontecimento. Bensaïd recorda uma palestra de Mandel, que acabara de chegar de Berlim, na qual argumentou que a “revolução política tinha começado com os porta-estandartes de Rosa Luxemburgo carregados por multidões” diante de uma plateia atordoada no tradicional salão da Mutualité. A corrente morenísta (Moreno já falecido) também cairia nessa análise objetivista.
No entanto, também é fato que outras correntes saíram a sustentar os tijolos do Muro em suposta “defesa do Estado operário”… A realidade é que faltou uma perspectiva independente que considerasse a queda do stalinismo e a reunificação alemã desde a esquerda anticapitalista e autenticamente socialista.
[12] Devemos lembrar que o expurgo dos partidos comunistas fora da URSS no final da década de 1930 foi tremendo (Broué). Na medida em que, por exemplo, Stalin ordenou a liquidação total do Partido Comunista Polonês por causa de suas características “luxemburguistas” (Deutscher), e que, por exemplo, o próprio Tito cuidou pessoalmente, desde seu confortável escritório em Moscou, em 1939, de expurgar o Partido Iugoslavo de todos os seus elementos “trotskistas”. As mãos desse carismático líder stalinista ficaram manchadas de sangue para sempre, apesar das ilusões da corrente pablista de que Tito iria girar a esquerda ou estabelecer relações com a Quarta Internacional.
[13] Apesar de seu embelezamento, a “revolução cultural” chinesa no final dos anos 1960 nada mais foi do que uma luta interburocrática instrumentalizando a juventude de ambos os lados (Naville, Lew).
[14] O próprio Deutscher, caracterizado no pós-guerra por repetidas ilusões de autorreforma da burocracia, observa o seguinte: “Grande parte da opinião soviética estava bem ciente da ambiguidade do caráter político de Kruschev e dos motivos que o induziram a dar sua bênção à ruptura do partido com o stalinismo. Essa bênção em grande parte platônica estava se tornando uma maldição disfarçada, escondendo uma oposição teimosa e astuta a uma verdadeira democratização socialista da URSS. (Direi de passagem que a imagem de Kruschev como um defensor da desestalinização foi, nos últimos anos, muito mais amplamente aceita no Ocidente (…) do que na URSS)” (La década de Krushov).
[15] É insólito que correntes do trotskismo subscrevam a crítica de Althusser contra o “culto à personalidade” de Stalin como se fosse um discurso de “direita”… Kruschev chega a citar a esposa de Lênin em uma carta a Kamenev no final de 1922: “Lev Vorisovich! Devido a uma pequena carta que escrevi em palavras ditadas a mim por Vladimir Ilitch, com a permissão de seus médicos, Stalin ontem se permitiu dirigir-se a mim com uma violência incomum. Durante meus trinta anos de militante, nunca tinha ouvido um companheiro falar palavras tão insolentes para outro. Os assuntos do Partido e de Ilitch não são menos importantes para mim do que para Stalin. Agora eu preciso do máximo de autocontrole. O que se pode e o que não se pode discutir com Ilitch eu sei melhor do que qualquer médico, pois sei o que o deixa nervoso e o que não o perturba; de qualquer forma, eu conheço essas coisas melhor do que Stalin. Apelo a você e a Grigory [Zinoviev], como os camaradas mais próximos de V.I., e peço que me protejam de intromissões insolentes em minha vida privada, e de invectivas e ameaças vis. Não tenho a menor dúvida sobre qual será a decisão unânime da Comissão de Controle, com a qual Stalin me ameaça; No entanto, não tenho força nem tempo para desperdiçá-lo em brigas sem sentido. Além disso, sou um ser humano que atualmente sofre de tensão nervosa excessiva” (Nadejda Krupskaya citada por Kruschev).
[16] É óbvio que aqui Thompson está opondo capacidades humanas transformadoras contra o aparato morto do stalinismo. Thompson acrescenta o seguinte nessas cartas históricas que em grande parte lançaram as bases para sua principal obra, The Making of a Working Class in England: “(…) a rejeição da criatividade da ação humana (…) na cadeia determinada de acontecimentos, em vez de considerá-los como seres morais e intelectuais na construção de sua própria história, ou seja, a rejeição de que os seres humanos possam, por um ato social voluntário, superar em certa medida as limitações impostas pelas ‘circunstâncias’ ou ‘necessidades históricas’. No mundo comunista afirmar isso é uma heresia que toma a forma de uma ideologia que faz a fortaleza (contrafortes) da burocracia” (” Agency and choice, I. A reply to criticism “).
[17] Isto também se aplica aos desastres imediatos da Segunda Guerra Mundial e ao rápido processo de reconstrução europeia.
[18] Parte do segundo volume do nosso trabalho será dedicada a estes aspectos. Por enquanto, remetemos o leitor à nossa ” Dialéctica de la transición. Plan, mercado y democracia obrera”.
Por outro lado, para ver um exemplo concreto dos elementos de alienação dos trabalhadores, basta saber que o trabalho era muitas vezes inútil porque o que se produzia era inútil: “A desmoralização generalizada da população expressava-se sob a forma de cinismo político e baixa produtividade (e numa taxa de natalidade em declínio). Essa desmoralização foi resultado do monólogo político ininterrupto, da repressão e da falta de reflexão na aplicação do igualitarismo. O dia útil na Tchecoslováquia começa às 6h30 e termina por volta das 14h30. Muitos trabalhadores passavam a tarde trabalhando no mercado privado, geralmente com material do mercado negro. O dinheiro que eles ganhavam dessa forma exacerbava seu desejo por itens de consumo que não conseguiam. Todas as atividades fomentavam negócios sujos de todos os tipos” (Berger 2017: 2017).
[19] Não podemos nos dedicar muito à “marxologia” neste texto. Mas parece que os Manuscritos Econômico-Filosóficos nunca foram um texto autônomo como geralmente são apresentados, mas parte de rascunhos de trabalho mais abrangentes intitulados Manuscritos de Paris (cf. Koei Saito, no plano de publicação das obras completas de Marx e Engels chamado MEGA 2).
[20] Entre os autores marxistas da Europa Ocidental incluen-se Ernst Bloch, Erich Fromm, Herbert Marcuse, Henry Lefebvre, Ernest Mandel e outros.
[21] Diante de definições desse tipo no contexto dos processos de revolução antiburocrática no Leste Europeu, fica muito claro o caráter reacionário, conservador e pró-stalinista da elaboração althusseriana clássica (o que não quer dizer que não tenha tido importantes contribuições fragmentárias, como apontamos).
[22] Esclareçamos de passagem que o Il Manifesto nunca foi trotskista, embora fosse uma revista crítica ao status quo vigente na esquerda.
[23] Na visão de Mandel, Bloch é o principal filósofo marxista do século 20. Não nomeamos Georg Lukács porque seu comportamento político era muito mais sinuoso.
[24] Seus partidos podem ser considerados, genericamente, burgueses-operários ou diretamente burgueses-pequeno-burgueses, das camadas médias esclarecidas, em qualquer caso com votos operários (cada caso deve ser estudado concretamente).