Traducción al portugués: Esquerda Web
Este texto, de Roberto Saénz, enfrenta um dos temas centrais do marxismo: como conceber o trabalho e a lei do valor na transção socialista. A partir de Engels, Trotsky e Rubin — com passagens pelos debates de Naville e Mandel — o autor sustenta que a planificação não elimina de imediato as categorias da economia política (preços, dinheiro, salários), mas as estatiza e reordena sob novas finalidades. Assim, contra leituras “administrativistas” ou tecnicistas, argumenta que não há atalho: a transição precisa medir produtividade, custos e escassez em termos socialmente necessários, sob controle democrático dos produtores, e em tensão permanente com o mercado mundial.
Saénz resgata a crítica de Trotsky ao “chicote administrativo” e ao fetichismo que reduz relações sociais a variáveis técnicas, mostrando por que planificação, mercado e democracia socialista formam uma dialética reguladora — e por que ignorar os “sinais” de custo e de qualidade leva à irracionalidade econômica. Em diálogo com Rubin e Mandel, o texto defende que a lei do valor opera necessariamente, embora não deva predominar, e que infringir parcialmente suas proporções pode ser necessário para que a acumulação socialista avance sem recair no “socialismo de mercado” nem no comando burocrático.
Por fim, abrindo o horizonte estratégico, o autor recoloca Marx dos Grundrisse para pensar o devir do trabalho: a perspectiva de sua transformação em atividade no comunismo, quando o tempo de trabalho deixa de ser a medida da riqueza e o intelecto social se torna força produtiva imediata. Até lá, a luta passa por reduzir desigualdades herdadas do capitalismo, submeter a contabilidade econômica à deliberação da classe operária e fazer da planificação um processo verificado por produtores e consumidores associados. Afinal, de acordo com Sáenz: “não podemos brincar de esconde-esconde com as relações de valor-trabalho na transição: elas devem ser restringidas e até mesmo infringidas para que a acumulação socialista progrida, mas não podem ser ignoradas”. Boa leitura!
Redação
Do Trabalho Humano ao “General Intelect” (Ou passagem da Transição ao Comunismo)
Rascunhos para a segunda seção do volume II de Marxismo e a transição socialista. Planejamento, Mercado e Democracia Socialista
12 Outubro, 2025
“Definitivamente, será em vão tentar ressituar a ‘verdade’ marxista sobre a questão [do trabalho] ou fazê-los aparecer como dois problemas abertamente contraditórios [a emancipação do trabalho assalariado e a abolição do trabalho tout court]. O que temos aqui são as tensões que atravessam o conjunto da herança legada por Marx e Engels. Assim, no Anti-Dhüring, revisado por Marx, e que teve uma influência considerável na tradição marxista, Engels expõe toda uma problemática centrada na emancipação pela produção, permitindo assim o advento do reino da liberdade (…) “A vida em sociedade própria dos homens, que até agora se desenvolveu entre eles como ‘concedida’ (octroyée) pela natureza e pela história, agora se torna um ato livre (…) É o salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade.”
Artous, “Un extracto de «Le travail et l’ émancipation», de Karl Marx”, 2016
Em seguida, nos concentraremos em pensar sobre os vínculos entre o futuro do trabalho e a lei do valor na transição socialista e além.
1- A Planificação socialista e a lei do valor
A planificação socialista tem dois limites objetivos: o trabalho humano disponibilizado em suas duas formas, de trabalho vivo e de trabalho morto, bem como os recursos naturais disponíveis. Essa realidade não pode ser burlada na transição: ela é objetivamente imposta dado um certo nível das forças produtivas.[1] Trotsky aponta isso claramente no que diz respeito à continuidade das imposições de valor do trabalho e como medi-las: “Acontece que todo cálculo foi abandonado e que a racionalização saiu de moda (…) Desde quando os muros do plano econômico foram levantados, não de acordo com um plano, mas a olho? (…) Os cálculos, que antes também não eram ideais, (…) foram abandonados a partir do momento em que a direção burocrática substituiu a análise marxista da economia e a regulação elástica dela [em termos de valores, preços e dinheiro] pelo chicote administrativo (…). Já se passaram dois anos desde que falamos sobre os faróis apagados” (El fracaso del Plan Quinquenal, 1973: 98).[2]
É verdade que na planificação socialista a lei do valor, herdada do capitalismo, não se impõe como uma lei cega ex post como no mercado. Mas o fato de que a alocação de trabalho e recursos seja ex ante via planificação não significa que se possa prescindir de qualquer medida ligada à produtividade do trabalho humano, uma produtividade avaliada, aliás, em relação ao que prevalece no mercado mundial: “Com o tempo, ficou mais claro que a substituição do mercado pela planificação não poderia abolir a função do mercado de trabalho, do valor de troca e do problema dos preços (e, entre eles, dos salários), que permanecem no centro da vida econômica” (Naville, 1974: 235).
Trotsky é cristalino em A Revolução Traída de 1936 sobre a importância de uma avaliação racional dos preços de acordo com seu valor de trabalho, uma expressão monetária que ainda não pode ser dispensada na transição: a) os preços não podem ser ditados pela vontade exclusiva dos planejadores, ou seja, de forma administrativa (antieconômica); b) os preços ainda não podem ser uma mera expressão “técnica” dentro da economia. Eles continuam a ser uma categoria da economia política, só que estatizada; c) os valores (preços) ainda são uma expressão do trabalho socialmente necessário na produção, mesmo que essa expressão seja distorcida pelas necessidades da própria planificação; d) as contas nacionais do plano devem ser elaboradas com base nos custos reais das realizações, mesmo que sejam posteriormente violados devido a necessidades da planificação. Custos reais que só podem ser calculados de acordo com a quantidade de trabalho socialmente necessária para sua produção, e ainda expressa em valor e preço.[3] Os cálculos meramente em unidades físicas falharam em todos os casos (veremos abaixo): “Os dois problemas, o do Estado e o do dinheiro, têm vários aspectos em comum, uma vez que ambos, em última análise, são reduzidos ao problema dos problemas que é o rendimento do trabalho. A tributação estatal e a tributação monetária são um legado da sociedade dividida em classes (…) Na sociedade comunista, o Estado e o dinheiro desaparecerão e sua agonia progressiva deve começar no regime soviético” (Trotsky, Crux: 67).
A explicação da subsistência das categorias da economia política e sua “operacionalidade” na planificação da economia de transição foi desenvolvida em nossos últimos textos (“Trabalho e Autoexploração na Transição”, “Planejamento após o stalinismo” e “Crítica do “socialismo vulgar”, todos em Izquierda Web). No entanto, podemos afirmar, com o eminente economista soviético Isaac Ilyich Rubin, que “As categorias básicas da economia política expressam, portanto, vários tipos de relações de produção que assumem a forma das coisas [reificação que também ocorreu sob o stalinismo, transformando o trabalho em uma relação “técnica” e não social]. [Como afirma Marx], “na realidade, o valor é apenas em si uma expressão material de uma relação entre as atividades produtivas dos homens” (Marx, Teorias da Mais-Valia, citado por Rubin, 2021: 51), uma expressão material que ainda não termina na transição, como aponta Trotsky.[4]
É verdade que Rubin limita sua análise à economia mercantil capitalista. Ele começa seus Ensaios sobre a Teoria Marxista do Valor falando sobre uma suposta “ciência da engenharia social” que estaria surgindo na URSS na década de 1920. Ele parece supor que uma abordagem “meramente técnica” da economia de transição era possível, porque ele concebe de forma muito restrita as categorias da economia política, circunscritas ao capitalismo (algo semelhante acontecerá de certa forma com Preobrazhensky). Em seu entusiasmo revolucionário, ou talvez devido ao seu seguro medo do stalinismo emergente (lembramos que sua origem era menchevique), em seu trabalho as relações de produção herdadas do capitalismo parecem ter “desaparecido no ar”…
Mas ficamos com a dúvida se ele não estava usando alguma linguagem esópica: sua abordagem da lei do valor e do fetichismo da mercadoria é profunda demais para que ele não tenha consciência de que esse conjunto de relações não pode ser circunscrito apenas ao capitalismo, como se colocasse uma barreira invisível entre as leis do capitalismo e a sociedade de transição que a sucede.
Como digressão, fica claro que Trotsky conseguiu resumir todo o debate econômico e político sobre a transição até sua época, e o fez de forma brilhante: “Os postulados da ‘abolição’ do dinheiro, da ‘abolição’ do salário, ou da ‘eliminação’ do Estado e da família, característicos do anarquismo, só podem ser interessantes como modelos de pensamento mecânico. O dinheiro não pode ser ‘abolido’ mecanicamente, o Estado e a família não podem ser ‘eliminados’; eles devem primeiro esgotar sua missão histórica, perder seu significado e desaparecer. O fetichismo e o dinheiro só receberão o golpe de misericórdia quando o crescimento ininterrupto da riqueza social libertar os bípedes da ganância por cada minuto extra de trabalho e do medo humilhante da magnitude das rações. Ao perder seu poder de proporcionar felicidade e afundar no pó, o dinheiro será reduzido a um meio conveniente de contabilizar estatísticas e planejamento. Depois disso, é provável que não seja mais necessário nem mesmo para isso. Mas devemos deixar esse cuidado para nossos bisnetos (…)” (Trotsky, Crux: 68).
Voltando a Rubin, é como se uma “barreira invisível” fosse colocada em sua rica elaboração em relação às afirmações de Marx na Crítica do Programa de Gotha (e, mais importante, com a experiência do século passado), de que a nova sociedade emergente da revolução ainda se baseia nas velhas relações – leis – herdadas do capitalismo. que se elas podem ser politicamente modificadas pelo ato revolucionário inicial, a “tarefa negativa” de acordo com Marx (o proletariado desloca a burguesia do poder e ergue seu novo Estado proletário), a “transformação positiva”, econômica e social, é muito mais complexa, e seu desenvolvimento em direção a uma nova base material levará todo um período histórico antes da estatização das categorias da economia política. Não pode haver barreira invisível entre uma etapa e outra: as leis de transição são, inevitavelmente, uma mistura das leis herdadas do capitalismo e das novas tendências do futuro socialista e comunista: “(…) Essa função do dinheiro, juntamente com a exploração, não pode ser liquidada no início da revolução proletária, mas será transferida sob um novo aspecto, para o Estado mercantil, bancário e industrial universal. Além disso, as funções mais elementares do dinheiro, uma medida de valor, um meio de circulação e pagamento, serão preservadas e adquirirão, ao mesmo tempo, um campo de ação mais amplo do que tinham no regime capitalista” (Trotsky, Crux: 68).
No entanto, deixando de lado essa unilateralidade, a abordagem de Rubin neste trabalho dá um valioso suporte teórico ao que temos vindo a desenvolver nos nossos artigos anteriores: “(…) a ciência deve, antes de tudo, distinguir (…) dois aspectos diferentes da economia capitalista [e da economia de transição, acrescentamos]: o aspecto técnico e o aspecto socioeconômico, o processo técnico-material de produção e sua forma social, as forças produtivas materiais e as relações sociais de produção [as relações de subsistência valor-trabalho]” (Rubin, 2021: 8). E Rubin acrescenta com Marx: “Como em geral em todas as ciências históricas e sociais, ao observar o desenvolvimento das categorias econômicas, deve-se sempre ter em mente que o sujeito – a sociedade burguesa moderna, neste caso [ou a sociedade transitória] – é algo dado tanto na realidade quanto na mente, e que as categorias expressam, portanto, modos de ser, determinações de existência [no nosso caso, a subsistência de relações de autoexploração do trabalho na transição] (…) Também no método teórico [da economia política] é necessário que o sujeito, a sociedade, esteja sempre presente na representação como premissa” (Marx citado por Rubin, 2021: 10).
Aqui há dois pontos que queremos enfatizar antes de continuar: a) que as categorias econômicas expressam relações reais, formas de ser ou de existir como afirma Rubin; b) que em seus Ensaios podemos ver como ele trata agudamente o próprio conceito de relações de produção de forma ampliada (isto é, não circunscrita à relação direta capital-trabalho): Da simples “forma-mercadoria” à composição orgânica do capital, o que se expressa são as relações sociais entre as pessoas, em relação à nossa abordagem da planificação, do mercado e da democracia socialista como tantas outras relações de produção que caracterizam a economia de transição.
Um atalho para contornar a continuidade das determinações do valor do trabalho na economia transitória é alegar que as alocações planejadas são feitas de maneira “administrativa” (voluntarista, antieconômica). O próprio Trotsky aponta (a Traída é um texto brilhante e brilhantemente concreto sobre a mecânica da economia de transição!) que a planificação administrativa demonstrou suficientemente sua força e, ao mesmo tempo, suas limitações. Ele afirma que um plano econômico concebido a priori, para países com milhões de habitantes, que sofre de todos os tipos de contradições e desproporções econômicas, não é um dogma imutável, mas uma hipótese de trabalho que deve ser verificada e transformada durante sua execução. Duas alavancas devem servir para regular e adaptar o plano: uma alavanca política, criada pela participação real das massas na liderança, o que é inconcebível sem a democracia soviética; e uma alavanca financeira resultante da verificação efetiva de cálculos a priori, por meio de um equivalente geral, o que é impossível sem um sistema monetário estável” (Trotsky, Crux: 68/9). Como se vê, Trotsky está a anos-luz de distância daqueles que sonham com a substituição imediata do dinheiro por cálculos cibernéticos na economia de transição, embora possam ser um fator auxiliar de enorme importância no desenho inicial do plano a ser verificado em sua execução pelos produtores e consumidores associados.
“(…) O sucesso de uma construção socialista [leia-se bem: socialista] é inconcebível sem que o sistema planificado esteja integrado pelo interesse pessoal imediato, do egoísmo do produtor e do consumidor, fatores que não podem ser manifestados de forma útil se não tiverem esse meio habitual, seguro e flexível, o dinheiro. O aumento do rendimento do trabalho e a melhoria da qualidade da produção são absolutamente impossíveis sem um padrão de medição que penetre livremente em todos os poros da economia, isto é, uma unidade monetária firme. É verdade que o Estado soviético é ao mesmo tempo o proprietário da massa de mercadorias e dos órgãos de radiodifusão; mas isso não altera o problema: as manipulações administrativas relativas aos preços fixos das mercadorias não criam de forma alguma uma unidade monetária estável, nem a substituem para o comércio interno, muito mais para o comércio exterior. A economia soviética (…) tem a maior necessidade de verificação constante por meio de um controle fixo de valor” (ibid.: 69).
Muito bem: Trotsky é cristalino ao dizer que não há como “administrativamente” virar as costas às relações reais de valor do trabalho, que ainda não podem ser reduzidas a meras relações técnicas ou físicas, como se o trabalho humano não estivesse envolvido nelas, como se estivéssemos diante do mundo do “trabalho puro” sem um sexo definido! (É justo dizer que Pierre Naville não diz nada muito diferente do próprio Trotsky).
Se tudo isso é assim, e é, significa que na transição, especialmente quando se trata de sociedades que não são do centro imperialista, as categorias da economia política, como salários e dinheiro, subsistirão como uma expressão da base valor-trabalho da transição. Que essa subsistência ainda expressa relações de desigualdade é um fato que seria errado obscurecer como o stalinismo fez, tentando ignorar, por exemplo, na voz de Stalin, que o trabalho necessário e excedente ainda existia na URSS. E o cálculo cibernético não avança muito as coisas se se trata de abolir as relações de valor subsistentes ou se se pretende que esse cálculo substitua o que, como já afirmamos mil vezes, são a expressão no campo da economia das relações econômicas de desigualdade social que ainda não podem ser abolidas de forma meramente técnica.
2- “Engenharia social” ou economia política da transição?
Estamos agora interessados em abordar o problema do trabalho na transição por causa de sua ligação óbvia com a teoria do valor-trabalho e sua extinção: a primeira desaparece, a segunda desaparece. É um tema que tem duas tarefas diferentes.
A primeira abordagem, mais característica – e até vulgar – considera que na transição para a economia de transição, a exploração do trabalho alheio desapareceria como num passe de mágica: chegaríamos ao mundo da “engenharia social”. Sintomaticamente, eminentes teóricos marxistas soviéticos, como o próprio Rubin, Preobrazhensky e o falecido Pashukanis, flertaram com esse esquematismo, compreensível de certa forma dada a novidade radical da revolução socialista de 1917: pode-se pensar que a ruptura foi tal que, praticamente, o próprio materialismo histórico ficara no passado (Bukharin veio a afirmar isso com todas as letras, embora não tenhamos tempo para abordar isso aqui!).
A segunda abordagem, que apoiamos junto com Trotsky e Naville, é a que considera que de forma alguma as relações sociais na transição podem ser vistas como mera engenharia social. Por trás do usufruto do trabalho humano, sempre podem existir relações ocultas de desigualdade que, por definição, não podem ser meramente técnicas, algo que esconderia as imposições que o trabalho acarreta, mas sociais. Ou seja: relações de desigualdade entre diferentes categorias de trabalho no mundo do trabalho. E acontece que, se a sociedade pós-capitalista obviamente vem do capitalismo (não pode vir de outro lugar!), é lógico pensar que nenhuma lei especial cairá do céu, mas que a planificação socialista e a democracia ainda terão que lidar com as leis do valor do trabalho herdadas do capitalismo.
Também é verdade que, inevitavelmente, toda economia é a aplicação do trabalho humano à produção, uma relação que, em sua forma abstrata ou geral, como força produtiva, pode ser considerada trans-histórica (embora vejamos com Marx que isso não é necessariamente assim; que no curso do desenvolvimento histórico sofre uma modificação qualitativa).
Aqui há duas apreciações: A) a generalização universal do trabalho humano como trocas de valor-trabalho só foi alcançada com o capitalismo. E é sob o capitalismo que o trabalho humano assumiu a forma de uma “contabilidade econômica universal” (Mandel).[5] Este é um produto da decantação histórica de infinitas práticas econômicas humanas na forma de medir e comparar suas aplicações de trabalho no mercado. No entanto, a planificação socialista é medida em relação a essa realidade que vem do desenvolvimento relativo das forças produtivas e das imposições do mercado mundial, e que a serviço da acumulação socialista deve violar – até certo ponto – proporções que, se seguidas cegamente, levariam de volta ao capitalismo.
No entanto, isso não pode ser feito à custa de negar o que está oculto nessas proporções, generalizadas pelo capitalismo no mercado mundial: 1) que estamos lidando com proporções de trabalho humano consideradas de acordo com o nível de produtividade alcançado pelas forças produtivas no respectivo estágio de desenvolvimento humano, e 2) que avaliamos a superação do trabalho humano como medida de riqueza, com Marx, não como uma simples redução da exploração ou auto-exploração do trabalho na transição (embora deva obviamente começar por aí, a partir da luta contra a desigualdade que implica a superação da dominação do trabalho morto sobre o trabalho vivo, a dominação do trabalho intelectual sobre o trabalho manual, etc.), mas, pura e simplesmente, como uma superação do trabalho humano como tal e sua transformação no conceito mais genérico de “atividade”.[6]
Isso nunca pode superar nossa dependência da natureza, que sempre será maior do que a própria humanidade, nem o fato de que, de certa forma, o “reino da necessidade” ainda está lá, mesmo por causa do fato material de que somos seres biológicos (essa determinação material última é a migalha da verdade que o raciocínio “materialista passivo” de Timpanaro tem).
E, no entanto, acreditamos, com Antoine Artous, que, para marcar uma ruptura com as sociedades de exploração do trabalho, há uma tensão na herança marxista entre a ideia de emancipação do trabalho assalariado (tarefa de transição) e a emancipação da determinação do trabalho como tal (tarefa do comunismo): “É necessário, então, libertar o trabalho e libertar-se do trabalho. E, ao fazê-lo, marca uma ruptura com uma leitura de Marx, forte na tradição marxista, que ontologiza a produção em todas as formas: a emancipação do trabalho permite que a sociedade se reconcilie consigo mesma, colocando a produção, finalmente emancipada, no centro da vida e das relações sociais. Aqui, a situação se inverte, é além da produção que o indivíduo pode desenvolver atividades verdadeiramente livres [uma interpretação que, de nossa parte, não compartilhamos, veremos]. Acontece que esta passagem do Livro III de O Capital [citação analisada por Artous no artigo que estamos discutindo, Le capital, III, Editions Sociales, 1960, página 168] explicita mais claramente do que os Grundrisse [que veremos imediatamente mais adiante] a consequência dessa abordagem: a esfera do trabalho não pode desaparecer. Estamos longe das fórmulas da Ideologia Alemã que invocam uma ‘transformação do trabalho em atividade livre’” (Artous, idem).[7]
Assim, nossa abordagem combina tanto uma apreciação ampliada das continuidades das relações valor-trabalho na transição, quanto uma abordagem restritiva do trabalho que reconhece que no comunismo não apenas a lei do valor será extinta, mas até mesmo as imposições do trabalho por necessidade acabarão, tornando-se outra coisa: uma atividade humana relativamente livre por assim dizer, que se não puder superar as relações metabólicas com a natureza (o que seria uma fuga para o idealismo), superará o fardo que significa – quase – que todo o trabalho seja feito por necessidade. (Note-se que Artous defende outra posição que não a que acabamos de afirmar: ele aponta que o que muda são as proporções relativas entre tempo de trabalho e tempo livre e não a própria natureza do trabalho, como pensamos).[8]
Deve-se notar que nem todos os autores marxistas reconhecem a continuidade das relações de valor na transição, mesmo que, como acreditamos, elas devam ser violadas até certo ponto para que a acumulação socialista progrida. Portanto, logicamente, eles não reconhecem a sobrevivência das categorias da economia mercantil, como trabalho assalariado, dinheiro, preços, etc. Em artigos anteriores, criticamos autores como Cockshott e Cottraill, que acreditam que com a estatização dos meios de produção passamos automaticamente a meros cálculos técnicos de produção.
De sua parte, Mandel não chega ao ponto de negar a subsistência das relações valor-trabalho na transição. Deixando de lado suas obras mais vulgares, como o Tratado de Economia Marxista, 1962, onde afirma mecanicamente que “a economia soviética não revela nenhum dos aspectos fundamentais da economia capitalista” (Mandel, 1962: 174), ele explica a continuidade da lei do valor, embora afirme que essa lei não governa a economia soviética. Mandel aprecia o império da planificação, mas com uma tendência administrativista de adaptação ao stalinismo, onde a democracia socialista se perde de vista como um elemento fundamental no mecanismo da economia de transição: “A acumulação soviética é uma acumulação de meios de produção como valores de uso. O lucro não é o fim nem o principal motor da produção (…) [A] competição é o que determina a anarquia da produção capitalista (…) Pelo contrário, a planificação soviética é uma planificação real, na medida em que todos os meios de produção industrial estão nas mãos do Estado. A economia soviética escapa completamente a essas leis [as da anarquia de mercado] e a esses aspectos particulares [a falta de planejamento geral]” (Mandel, 1975: 174/5). É evidente que o Mandel de 1972, quando publicou este trabalho, foi caracterizado por uma ingenuidade colossal, para dizer o mínimo.
Os tapas da história, como a queda do Muro de Berlim em 1989, o fizeram mudar de posição, pelo menos em alguns aspectos, embora muitos de seus seguidores acreditem que a abordagem do stalinismo foi um dos aspectos mais fracos e esquemáticos de sua elaboração. Em Poder e Dinheiro, de 1992, sua penúltima obra, ele corrige suas avaliações em certo sentido e reconhece que as leis do capitalismo subsistem, como a lei do valor na transição, embora enfatize que “ela opera, mas não predomina”. Algo com o qual, em termos gerais, podemos concordar, embora acrescentemos imediatamente que no contexto do mercado mundial, a lei das leis do capitalismo de uma forma ou de outra acaba sendo imposta, sob pena de irracionalidade econômica em sociedades em transição que não são do centro capitalista, que não possuem o maior grau de produtividade do trabalho alcançado pelo capitalismo.
Mandel rejeitou os “socialistas de mercado”, o que estava certo, porque eles buscavam a adaptação passiva, mas ele sempre perdeu de vista o fato de que a economia de transição tem três reguladores e não funciona de acordo com uma oposição mecânica entre plano e mercado: seu mecanismo é uma dialética entre planificação, mercado e democracia socialista. Como Trotsky apontou durante os anos 30 e a maioria dos “trotskistas” perdeu de vista (e, para piorar as coisas, eles continuam a perdê-lo de vista até hoje no século 21!).
A inclinação da vara de Mandel para o lado “antimercantil” corria o risco, como fazem nossos cibercomunistas, de embelezar as relações de exploração que marcaram a degeneração stalinista. A dialética da transição enfrenta dois perigos: se degenerar em “socialismo de mercado” à la Bukharin, impedirá que a acumulação socialista progrida. Mas se ele se apega à lógica do “comando administrativo”, ignorando a sobrevivência das categorias da economia política, trabalha na direção oposta: obscurece as imposições que elas significam em relação ao trabalho humano, reduzindo as relações sociais a um mero fator “técnico” (“a nova ciência da engenharia social” da qual Rubin fala erroneamente no início de sua obra).
Ainda assim, Mandel não deixa de ter afirmações corretas – assim como Rubin – como as seguintes (é óbvio que Mandel estava familiarizado com o trabalho do economista “menchevique” soviético, embora ele não tenha seguido seus valiosos ensinamentos sobre a teoria do valor-trabalho, mas sim a unilateralidade técnica de Preobrazhensky): “Nossa resposta a essas acusações [as dos apologistas do stalinismo] é que um dos princípios centrais do materialismo histórico é precisamente que as categorias científicas (…) são o produto de relações sociais reais e não de “raciocínios falsos” (…). A sobrevivência dessas “categorias” [aspas de Mandel], como mercadorias, valor e dinheiro na URSS e em outras sociedades semelhantes, tem uma base material na socialização insuficiente da produção. O trabalho ainda não assume plena e imediatamente seu caráter social. Os produtores, que ainda não constituem uma associação livre, não têm acesso direto aos meios de produção e aos bens de consumo. Portanto, o trabalho privado e a propriedade privada ainda não foram completamente abolidos” (Mandel, 1994: 38).
Em seguida, Mandel fala da “combinação híbrida e contraditória” que constitui, por um lado, a produção de mercadorias e a validade da lei do valor na transição e, por outro lado, o poder despótico da burocracia (a deseconomia do comando administrativo, acrescentamos). É interessante, e não tínhamos percebido, que Mandel recorra ao conceito de hibridismo para explicar as categorias econômicas e políticas na transição, de uma certa maneira muito geral semelhante à que fazemos, embora sem tirar nossas conclusões.
Por outro lado, estamos interessados em sublinhar essa avaliação da “deseconomia administrativa”. Porque se é economia não pode ser administrativa (isto é, algo puramente burocrático, arbitrário em relação às relações econômico-materiais reais), e se é administrativa, não pode ser verdadeiramente economia pelas razões mencionadas acima. As relações entre o arbitrário-burocrático-administrativo e o político e o econômico, que têm suas próprias leis, foram marcadas em nosso trabalho: por definição, uma “economia de tipo quase puramente burocrático” (Trotsky) é uma antieconomia, e um Estado burocrático-administrativo é antipolítico, no sentido de que as relações sociais e políticas entre classes e frações de classes, entre estratos sociais, eles são reduzidos, novamente, a algo meramente técnico, “naturalizado” em vez de entender que implicam valorações sociais (abordamos isso em detalhes em relação ao Estado no volume I de nosso trabalho).
Continuando com Mandel, embora vá e volte em seu raciocínio, ele afirma que: “(…) Os setores não mercantis [da economia planificada] estão [em todo caso, acrescentamos] de mil maneiras imersos nas relações mercadoria-dinheiro, apesar das pressões, do despotismo e do terror da burocracia (…) a tutela arbitrária do comportamento burocrático é restringida pela pressão do mercado capitalista mundial, no qual, em última análise, existe uma estrutura de preços única e a lei do valor exerce seu domínio incontestável [parece que Mandel finalmente se tornou um “Navillista”…].[9] Todo o comércio exterior do bloco soviético (incluindo o realizado no Comecon) foi, no final, realizado com base nos preços do mercado mundial” (Mandel, 1994: 50/51).
Mandel acrescenta – de certa forma contra si mesmo – que, embora considere que os preços administrados são aqueles que dominaram o comércio interno nos países não capitalistas do pós-guerra (o que é verdade), que também é protegido pelo monopólio do comércio exterior, como lei geral, quanto maior a proporção do produto interno ligada ao comércio exterior, multiplicada nesta era do mercado mundial globalizado, maior a influência da lei do valor sobre os preços planejados e sobre a distribuição de recursos dentro do setor estatal (algo que pode ser mediado, mas não ignorado, acrescentamos). Uma declaração clássica de Trotsky, que Mandel, em seu préobrazhenskyismo, ignorou por muito tempo!
E termina com uma frase apropriada contra a lógica do “socialismo em um só país”, não vulgarmente stalinista, mas pré-obrajenskiana: “A margem de manobra da economia planificada – isto é, a alocação centralizada de recursos materiais decisivos – é, portanto, claramente circunscrita [por essa pressão do mercado mundial]” (Mandel, 1994: 50/51).
Em suma, a moral é que não podemos brincar de esconde-esconde com as relações de valor-trabalho nas sociedades de transição: elas devem ser restringidas e até mesmo infringidas para que a acumulação socialista progrida, mas não podem ser ignoradas. Isso é assim até que o nível de abundância relativa seja alcançado, onde a lei do valor tende a desaparecer.
A experiência concreta do século passado mostrou que as relações de mercado não podem ser completamente evitadas no início da transição. Os preços devem expressar em dinheiro o trabalho incorporado nos produtos, seja sob a mediação direta ou indireta das relações de oferta e demanda no mercado ou dos quase-mercados da economia transitória, bem como na comparação de preço e qualidade com o mercado mundial: “O ano de 1935 começou com a supressão das cadernetas de pão; em outubro suprimiras as cadernetas dos demais víveres; os de necessidades básicas desapareceram em janeiro de 1936 aproximadamente. As relações econômicas dos trabalhadores das cidades e do campo com o Estado voltaram à linguagem monetária. O rublo se revelava como o meio de uma ação da população nos planos econômicos, começando com a qualidade e a quantidade dos bens de consumo. A economia soviética não pode ser racionalizada de nenhuma outra maneira” (Trotsky, Crux: 76).
Na mesma linha, Alec Nove, um economista “socialista de mercado”, apontou corretamente em suas obras da década de 1980 que “a informação contida nos preços é indispensável para a escolha de fins e meios. A planificação quantitativa é claramente inadequada, uma vez que não permite qualquer comparação entre os custos das alternativas. Como pode ser produzida electricidade? As centrais eléctricas devem ser grandes ou pequenas? É proibitivamente caro investir em minas de carvão no nordeste da Sibéria? Que tipo de material de isolamento é mais barato? Vale a pena investir num novo processo de produção de ácido sulfúrico? Não podemos responder a essas perguntas sem usar algum tipo de preço, sejam preços reais ou preços ‘sombra’, e os preços usados devem refletir os custos, que por sua vez refletem a relativa escassez de meios” (Nove, 1987: 151).[10]
Ou seja, fixar administrativamente as quantidades de trabalho humano e de recursos naturais não estabelece nenhuma correlação material – ou social – que não seja arbitrária, devido à falta do padrão comum de que os preços expressos em dinheiro ainda devem ser (a planificação cibernética ex ante pode ser uma ferramenta poderosa com a condição de que não viole a análise das relações de valor real; é um complemento, não uma substituição deles). Fixar proporções econômicas em termos puramente físicos, por exemplo, por peso e quantidade, como foi feito em algum momento da URSS para escapar do critério de acordo com os custos do trabalho e dos recursos naturais, leva à irracionalidade, porque peso e quantidade não têm o caráter de um padrão comum, de universalidade, que ainda dá a medida pelo valor-trabalho medido em preços e dinheiro. (Ele opõe o valor de uso ao valor – valor de troca – quando o limiar da abundância ainda não foi alcançado. Ou seja, quando uma medida igual não é mais necessária para circunstâncias desiguais).[11]
É por isso que Trotsky afirmou, categoricamente, que a planificação era em grande parte “realizada e controlada pelo mercado”: pela comparação de custo e qualidade feita por produtores e consumidores, que ainda não pode ser substituída pela alocação direta de recursos (típica da fase comunista, marcada pela abundância).[12]
E o mesmo é verdade para o mercado de trabalho, que, lembremos, continua a existir na transição e continua a ser baseado no trabalho assalariado (além da aberração antissocialista da existência da escravidão do Gulag na Rússia stalinista!).[13] A experiência histórica foi que os diretores de empresas na URSS burocratizada tiveram que manipular o nível de salários fora do plano se pretendiam reter uma certa categoria de trabalhadores: “A força de trabalho não deve ser uma mercadoria. De fato, na teoria oficial soviética, a força de trabalho “não é uma mercadoria” (…) [Mas] existem, no entanto, amplas estatísticas mostrando que milhões de pessoas mudam de emprego anualmente por vontade própria (…) e migram de uma área para outra sem se interessar pelas intenções dos planejadores (…) Há mobilidade [laboral] suficiente para garantir que problemas muito sérios possam surgir se a taxa salarial em uma indústria, profissão ou região for tal que não possa atrair e reter a força de trabalho necessária. As tensões e os esforços daí resultantes dão origem (…) a pressões para alterar as relatividades dos salários” (Nove, 1982: 268 e segs.).
3- “Marx para além de Marx” [14]
Em suma, o salário era um tipo de preço na URSS, o preço da força de trabalho, que vinha de um cálculo da proporção entre trabalho necessário e trabalho excedente, trabalho excedente que na autêntica transição socialista deve ser administrado pelo coletivo dos trabalhadores no nível da ditadura do proletariado e dos locais de trabalho para configurar uma relação de autoexploração ou relação de exploração mútua, como afirmou Naville, e não uma nova relação de exploração – não orgânica – como aconteceu na URSS e em outras sociedades não capitalistas do pós-guerra.
Como pode ser visto, todas essas ainda são proporções de valor (ou pelo menos, proporções de trabalho humano expressas conforme o leitor inventa). Em todo caso, é impossível considerá-las como meras relações técnicas, encobrindo relações de exploração e desigualdade. Porque o que está em jogo na planificação é como o trabalho humano e os recursos naturais são distribuídos. E para entender isso, podemos retornar a Marx via Rubin, introduzindo parênteses de nossa autoria: “Incapaz de entender que a associação dos homens que trabalham em sua batalha com a natureza, isto é, as relações sociais entre os homens, se expressam na troca [de aplicações de trabalho], o fetichismo da mercadoria [que subsistiu na URSS pelo simples fato da escassez e das eternas filas em frente às lojas] considera a intercambialidade das mercadorias como uma propriedade interna e natural das próprias mercadorias [o mesmo fetiche stalinista do “trabalho puro”]. Em outras palavras: o que é na realidade uma relação entre pessoas, aparece como uma relação entre coisas [uma questão que subsistiu na URSS por causa da contínua oposição do trabalho morto ao trabalho vivo e do tratamento das e dos trabalhadores como objetos de produção e não sujeitos dele], dentro do contexto do fetichismo da mercadoria” (Marx citado por Rubin, 2021: 12).
É óbvio que o fato puramente empírico de que, durante certos períodos, os custos de depreciação do capital fixo não foram incorporados aos preços dos produtos ou mercadorias na URSS, ou foram incorporados de forma muito irregular, não resolve as coisas. Essa irracionalidade foi realizada com base na pretensão ridícula de que os meios de produção eram “gratuitos” e que sua manutenção ou substituição custava “zero”: “No XXI Congresso do PCUS, A. Aristov mencionou a cifra de 60.000 fresadoras e 15.000 prensas mecânicas, “que permanecem por anos nos armazéns ou enferrujam nos pátios das fábricas”. Esse acúmulo de equipamentos não utilizados é facilitado pelo [irracional!] não incluir a amortização deste equipamento no preço de custo da produção corrente” (Mandel, 1975: 211). Quem pode pensar nesse tipo de estupidez antieconômica!
Um exemplo desse tipo de estupidez de considerar livres vários fatores de produção foi o manuseio de matérias-primas.[15] Por exemplo, no trabalho nas minas, a busca por uma produção acelerada resultou em enormes perdas, da ordem de 15 a 20% da produção das reservas minerais (excedente que se acumulou massivamente junto às minas como sucata).[16] Nos poços de petróleo da década de 1960, os gases liberados quase não eram usados. Estima-se que trilhões de metros cúbicos de metano foram perdidos a cada ano, que foi diluído no ar.
Dito isto, podemos agora nos voltar para as definições “futuristas” de Marx contidas em suas brilhantes páginas dos Grundrisse referentes à maquinaria. Sucintamente, o que Marx aponta é que o gasto de energia humana na produção deixará de ser a medida dos valores de uso. O desenvolvimento das forças produtivas é tal – apesar do desenvolvimento paralelo das forças destrutivas e da imensa relevância neste século XXI do lema socialismo ou barbárie – que, no caso de uma sociedade emancipada desenvolvendo, no caso das revoluções socialistas que ocorrem no centro capitalista, a tendência histórica de substituir o trabalho humano pelo “indivíduo social” e pelas forças coletivas do “general intellect” terminará deslocando o trabalho humano do centro da produção, emancipando-o e colocando entre a humanidade e a natureza as potências agregadas de sua criatividade técnico-científica.
Abrimos então, com as desculpas do leitor, um parágrafo muito longo com essas notas de tirar o fôlego e que, dada a extensão deste texto, analisaremos detalhadamente em nossa próxima edição.
“(…) Uma vez inseridos no processo de produção do capital, os meios de trabalho sofrem várias metamorfoses, a última das quais é a máquina, ou melhor, um sistema automático de máquinas (sistema de máquinas); o automático é apenas a forma mais completa e adequada dele, e pela primeira vez transforma a máquina em um sistema posto em movimento por um autômato, pela força motriz que se move; este autômato é composto de muitos órgãos mecânicos e intelectuais de tal forma que os próprios trabalhadores são determinados apenas como membros conscientes do sistema. A atividade do operário, reduzida a uma mera abstração da atividade, é determinada e regulada em todos os aspectos pelo movimento da máquina, e não o contrário. A ciência, que obriga os membros inanimados da máquina – em virtude de sua construção – a operar como um autômato de acordo com um fim, não existe na consciência do operário, mas opera através da máquina como poder estranho, como o poder da própria máquina, sobre ele (…) A acumulação de conhecimento e habilidade, das forças produtivas gerais do cérebro social, é assim absorvida, em relação ao trabalho, pelo capital e, portanto, apresenta-se como propriedade do capital, e mais precisamente como capital fixo. Esse caminho é o da análise através da divisão do trabalho, que já transforma cada vez mais as operações dos operários em mecânicas, de tal forma que a certa altura o mecanismo pode ser introduzido em seu lugar (para obter economia de energia) (…) A troca de trabalho vivo por trabalho objetivado, isto é, colocar o trabalho social na forma da antítese entre capital e trabalho, é o desenvolvimento final da relação de valor e de produção baseada no valor. O pressuposto dessa produção é, e continua sendo, a magnitude do tempo de trabalho imediato, a quantidade de trabalho empregada como o fator decisivo na produção de riqueza. Na medida em que a grande indústria se desenvolve, no entanto, a criação de riqueza efetiva torna-se menos dependente do tempo de trabalho e da quantidade de trabalho empregado do que do poder dos agentes acionados durante o tempo de trabalho, o que, por sua vez, sua poderosa eficácia, não tem nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que sua produção custa. Mas depende do estado geral da ciência e do progresso geral da tecnologia, ou da aplicação da ciência à produção (…) A riqueza efetiva se manifesta – e isso é revelado pela grande indústria – na enorme desproporção entre o tempo de trabalho empregado e seu produto, bem como na desproporção qualitativa entre o trabalho, reduzido a uma pura abstração, e o poder do processo de produção supervisionado pelo primeiro. O trabalho não parece mais confinado ao processo de produção, mas o homem se comporta como supervisor e regulador em relação ao próprio processo de produção. Apresenta-se ao lado do processo produtivo, em vez de ser seu principal agente. Nessa transformação, o que aparece como pilar fundamental da produção e da riqueza não é nem o trabalho imediato realizado pelo homem, nem o tempo que ele trabalha, mas a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão da natureza e seu domínio dela graças à sua existência como corpo social; em uma palavra, o desenvolvimento do indivíduo social. O roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual se baseia a riqueza atual, aparece como uma base miserável em comparação com essa base recém-desenvolvida criada pela própria grande indústria. Assim que o trabalho, em sua forma imediata, deixa de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho cessa, e deve deixar de ser, sua medida e, portanto, o valor de troca [deixa de ser a medida] do valor de uso. O trabalho excedente da massa deixou de ser a condição para o desenvolvimento da riqueza social, assim como o não-trabalho de alguns deixou de ser a condição para o desenvolvimento dos poderes gerais do intelecto humano. Com essa produção baseada no valor de troca, o valor de troca entra em colapso, e o processo material imediato é privado da forma de necessidade e antagonismo prementes. O livre desenvolvimento das individualidades e, portanto, não a redução do tempo de trabalho necessário com o objetivo de reduzir o trabalho excedente, mas, em geral, a redução do trabalho necessário da sociedade ao mínimo, ao qual corresponde a formação artística, científica, etc., dos indivíduos graças ao tempo que se tornou livre e aos meios criados para todos” (Marx: 218 e segs.).
E Marx culmina brilhantemente com o que não é realmente o fim do capitalismo, o poder da classe operária, mas a culminação do processo de transição, mais longo ou mais curto dependendo do piso da sociedade de onde parte, e o caráter universal-internacional da revolução: “A natureza não constrói máquinas, nem locomotivas, ferrovias, telégrafos elétricos, máquinas de fiação automáticas, etc. Estes são produtos da indústria humana, material natural transformado em órgãos da vontade humana sobre a natureza ou de sua ação na natureza. São órgãos do cérebro humano criados pela mão humana, a força objetivada do conhecimento. O desenvolvimento do capital fixo revela até que ponto o conhecimento social geral se tornou uma força produtiva imediata e, portanto, até que ponto as condições do próprio processo da vida social ficaram sob o controle do general intellect e se remodelaram de acordo com ele. Até que ponto as forças produtivas sociais são produzidas não apenas na forma de conhecimento, mas como órgãos imediatos da prática social, do processo da vida real” (Marx, 1980: 229/230).[17]
Portanto, vamos prender a respiração por um momento até nosso próximo artigo, no qual nos dedicaremos a analisar detalhadamente este longo fragmento de Marx, no qual o maior teórico do movimento socialista até hoje demonstra, de forma clara, que o trabalho como o concebemos hoje será transformado em outra coisa: atividade.
Bibliografia
Antoine Artous, “A lire: un extrait de «Le travail et l’émancipation», de Karl Marx, 2016.
Paul Cockshott y Maxi Nieto, Ciber-Comunismo. Planificación económica, computadoras y democracia, Editorial Trotta, Madrid, 2017.
Marcel van der Linden, Western marxism and the Soviet Union. A survey of critical theories and debates since 1917, Brill, Historical Materialism, 17, Leiden-Boston, 2007.
Ernest Mandel, Tratado de economía marxista, tomo II, Ediciones Era, México, 1975.
-“Iniciación a la economía marxista”.
–El poder y el dinero, Siglo Veintiuno Editores, México, 1994.
Karl Marx, Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (Grundrisse), volumen 2, 1857/1858, Siglo Veintiuno Editores, México, 1980.
Pierre Naville, Le Noveau Leviathan 4., Les échanges socialistes, éditions anthropos, París, 1974.
–Le Noveau Leviathan 1, De l’aliénation á la joissance, éditions anthropos, París, 1970.
Tony Negri, Marx más allá de Marx. Nueve lecciones sobre los Grundrisse, www.nodo50.0rg, Argentina, 2000.
Alec Nove, El sistema económico soviético, Siglo Veintiuno Editores, México, 1982.
–La economía del socialismo factible, Siglo Veintiuno Editores, México, 1987.
Isaac Ilich Rubin, Ensayos sobre la teoría marxista del valor, Ediciones dos Cuadrados, Madrid, 2021.
Robério Paulino, Socialismo no século XX. ¿O que deu errado?, Letras do Brasil, Brasil, 2010.
León Trotsky, La revolución traicionada, Editorial Crux, La Paz, Bolivia, sem data.
NOTAS
[1] O marxista soviético Isaac Ilyich Rubin, protegido de Ryazanov e expurgado por Stalin, aponta várias vezes em seus extraordinários Ensaios sobre a Teoria Marxista do Valor de 1928 o que acabamos de apontar: que é, em última análise, o desenvolvimento das forças produtivas que permite a existência real de novas relações de produção. A rigor, Rubin afirma de forma um pouco mais determinista, “as mudanças nas relações de produção que dependem do desenvolvimento das forças produtivas” (Rubin, 2021: 8), mas preferimos assumi-lo de uma forma mais matizada: há uma dialética entre forças produtivas e relações de produção onde ambas se intercalam no processo transitório, embora, Em última análise, será o desenvolvimento das forças produtivas que dará a medida das coisas.
Na revolução, de certa forma, as novas relações sociais “antecipam” o desenvolvimento das forças produtivas, embora estas voltem mais tarde aos seus sentidos. Por isso mesmo, a interpretação politista das coisas no estilo de Althusser, do falecido Bettelheim ou de Tony Negri bate contra o muro da materialidade.
[2] Os valores silenciados referem-se à recusa em avaliar os resultados do plano por meio do mercado, entre os consumidores, pelo fechamento da burocracia na década de 1930 para considerar a constante desvalorização da moeda como um mal, rejeitando os “sinais de preço” (termo que não é de Trotsky, mas dos socialistas de mercado, mas que tem sua validade em nossa opinião), a comparação do preço e da qualidade dos produtos com os do mercado mundial.
[3] Este problema é abordado no capítulo IV desta obra extraordinária, “A Luta pelo Rendimento do Trabalho”: “Vários professores obedientes conseguiram construir com as palavras de Stalin toda uma teoria, segundo a qual o preço soviético, em oposição aos do mercado, era ditado exclusivamente pelo plano ou por diretrizes; Não era uma categoria econômica, mas uma categoria administrativa destinada a servir melhor a nova distribuição da renda nacional em benefício do socialismo. Esses professores esqueceram de explicar como os preços podem ser ‘dirigidos’ sem conhecer o preço de custo real, e como isso pode ser calculado se todos os preços, em vez de expressar a quantidade de trabalho socialmente necessária para a produção de artigos, expressam a vontade da burocracia” (Trotsky, Crux: 75).
[4] Rubin publicou o trabalho excepcional que estamos citando em 1928, embora pareça que ele o completou em 1924. Juntamente com as obras de Evgeni Pashukanis, A Teoria do Direito e do Marxismo, e Evgeni Preobrajensky, A Nova Economia, entre outros, eles mostraram o excepcional desenvolvimento teórico que ocorreu na década e meia imediatamente após a revolução (bem como nos vários planos da arte, biologia, psicologia, ecologia e etc. O biógrafo clássico de Bukharin, Stephen Cohan, reflete isso em seu trabalho).
[5] “(…) quanto mais a produção de mercadorias se torna mais generalizada, mais o trabalho é regularizado e a organização da sociedade se concentra em torno de uma contabilidade baseada no trabalho” (Iniciação à Economia Marxista).
[6] Como já apontamos em outras notas, esta é uma hipótese de trabalho que transita entre dois limites: a) desontologizar o conceito de trabalho (embora sem perder a ideia engelsiana de que o trabalho fez o homem), b) não perder de vista o fato de que a troca humana com a natureza é uma relação material trans-histórica que caracteriza a própria humanidade: Nunca devemos esquecer que os humanos são, principalmente, natureza!
[7] Mandel, em um texto popularizador que em todo caso tem valor, aparentemente não tem tantas coceiras ao falar sobre o fim do trabalho, que ele relaciona com a automação: “(…) Imaginemos esse movimento em sua conclusão final. O trabalho humano é totalmente eliminado de todas as formas de produção, de todas as formas de serviço. Sob tais condições, o valor pode subsistir? O que seria de uma sociedade em que não houvesse mais ninguém que tivesse renda e em que as mercadorias continuassem a ter valor e continuassem a ser vendidas? Tal situação seria manifestamente absurda. Produzir-se-ia uma imensa massa de produtos, cuja produção não geraria qualquer rendimento, uma vez que nenhuma pessoa humana interviria na sua produção. Mas seria feita uma tentativa de “vender” esses produtos, que, no entanto, não teriam mais comprador. É evidente que, em tal sociedade, a distribuição de produtos não mais assumiria a forma de venda de mercadorias, uma venda que, além disso, seria totalmente absurda por causa da abundância produzida pela automação geral. Em outras palavras, a sociedade em que o trabalho humano fosse totalmente eliminado da produção, no sentido mais geral da palavra, incluindo os serviços, seria uma sociedade em que o valor de troca também teria desaparecido. Isso prova a validade da teoria [do valor], uma vez que no momento em que o trabalho humano desaparece da produção, o valor também desaparece” (Mandel, “Iniciação à Economia Marxista”).
A observação que deve ser feita aqui é que, uma vez que Mandel vem de um raciocínio precedido pela ideia de um “imagine”, e da questão da “redução ao absurdo” do raciocínio com o qual ele está polemizando (a daqueles que acreditam erroneamente que a lei do valor é eterna, a la Lukács, muito justamente criticada por Meszaros), não está claro, no entanto, se Mandel realmente acredita que o trabalho pode ser superado e se tornar outra coisa ou não (em qualquer caso, deve-se reconhecer que os problemas da automação são uma espécie de obsessão que marca sua valiosa obra Capitalismo tardio).
[8] Atenção mais uma vez: o exposto acima não significa que consideremos que a obra se transforma em um jogo, como apontou Fourier. A dimensão da aplicação ao “trabalho”, à atividade, à emulação, no conceito de aplicação às artes, às ciências, algo “diabolicamente sério”, como Marx apontou a respeito da regência de uma orquestra, não é apenas mantida, mas reforçada, e nesse sentido circunscrito podemos continuar a chamar essas aplicações humanas da atividade de “trabalho”. Basicamente, inclinamos a barra do trabalho para a atividade para que se entenda que, quando se trata de um gasto de energia humana na produção, há sempre a possibilidade de retorno de relações de exploração ou desigualdade.
Tony Negri, por sua vez, não tem dúvidas sobre a abolição do trabalho no comunismo: “O trabalho não é mais trabalho, é trabalho liberado do trabalho. O conteúdo do comunismo, portanto, consiste em uma reversão que suprime, ao mesmo tempo, o objeto invertido. O comunismo é apenas a reversão do trabalho na medida em que essa reversão é a supressão do trabalho. Libertação das forças produtivas, certamente, mas como uma dinâmica de um processo que leva à abolição, à negação em sua forma mais total. Deslocar a libertação do trabalho para o além-trabalho é o centro, o coração da definição de comunismo (…) O conteúdo, o programa do comunismo é um desenvolvimento de necessidades universais que emergiram da base coletiva, mas miserável, da organização do trabalho assalariado, mas que, de uma forma revolucionária, significa a abolição do trabalho, sua morte definitiva. Não se trata mais de perguntar sobre o caminho que leva da pré-história à história, mas sobre a revolução, sobre seu aspecto sincrônico e pontual” (Negri, 2000: 77).
Além do fato de que Negri metodologicamente coloca a questão em abstrato, porque de uma maneira anti-hegeliana ele se recusa a apreciar os desenvolvimentos materiais das coisas que tornam possível a “abolição do trabalho”, é no entanto claramente expresso que para o marxista italiano – ou pós-marxista – a perspectiva do comunismo é esta: abolir o trabalho como tal.
[9] Em sua obra Le Noveau Leviathan, Naville criticou Mandel por isso, alegando que sua negação do domínio mundial da lei do valor era uma declaração “anti-trotskista”.
[10] Nove e Mandel debateram na década de 1980, o primeiro inclinando a barra unilateralmente para o lado do mercado e o último implicando que a democracia socialista substituiria mecanicamente os preços e o mercado. Catherine Samary fez uma crítica clássica a ambos em uma escola de quadros da corrente mandelita no final da mesma década, defendendo a “regulação tripartite” da economia de transição (planejamento, mercado e democracia socialista).
[11] Deve-se lembrar que o direito igual, isto é, o direito burguês, desaparece junto com a produção de mercadorias e a lei do valor. Desenvolvemos isso no volume I de nosso trabalho.
(12) Acabamos de ver como Trotsky se queixa da atribuição por cartões de racionamento de bens de consumo que, na realidade, eram cartões de racionamento, em vez de subsídios em dinheiro.
[13] Trabalho assalariado escravo no caso do Gulag e superexercido com base na mais-valia absoluta no setor “normal” da indústria. Dizemos sobredemanda em termos de mais-valia absoluta porque a produtividade da economia era tão baixa, tão extensa era a lógica da planificação burocrático, que praticamente não havia ganhos em mais-valia relativa, em produtividade. Um caso extremo dessa mais-valia absoluta foi o sistema stakhanovista, que veremos neste mesmo volume II de nosso trabalho.
[14] Parafraseamos com este título uma obra homóloga de Tony Negri, embora não pensemos que Marx tenha ido além de Marx, mas que na realidade a obra de Marx, bem lida, supera a ontologização do trabalho, que não aparece em sua obra, mas foi realizada pelo stalinismo e pela socialdemocracia no século passado.
[15] Usamos o conceito de “fator de produção” de forma descritiva porque, como é bem sabido e temos citado nestas notas com o apêndice de Marx a As Teorias da Mais-Valia em Nossas Mãos, o próprio conceito de fator de produção faz com que esses fatores apareçam na economia burguesa separadamente e independentemente como lucro capitalista. renda da terra e salários dos trabalhadores, quando na realidade todas essas categorias são redutíveis à mesma coisa: trabalho humano.
[16] Sucata significa sucata, sucata ou sucata metálica do processo de fabricação. Toda a produção tem sucata, mas deve estar dentro de certas proporções (cerca de 1 ou 2% da produção, não mais). Já vimos que Kowalewsky considera que a economia soviética tinha uma proporção de excedentes tal que constituía, praticamente, um terceiro setor econômico junto com bens de produção e bens de consumo (a sucata na URSS atingiu 20 ou 30% da produção inutilizável! E ainda há “trotskistas” que defendem na transição uma economia administrativa em oposição a uma economia real!). Como uma anedota pessoal, lembro-me de que me deparei pela primeira vez com esse conceito de sucata trabalhando em uma fábrica metalúrgica no início dos anos 90.
[17] Absolutamente brilhante Marx, e brilhante Pedro Scaron, que, com a colaboração de José Aricó e Miguel Murmis, nos deixou as melhores traduções para o espanhol de O Capital e dos Grundrisse que nós, marxistas latino-americanos, possuímos até agora.




