“Uma crise orgânica remete ao fato de que, tal como está organizado, o regime de acumulação, o regime político e a forma de Estado que lhe são próprios já não funcionam; é preciso alcançar um novo ponto de equilíbrio, o que se resolve no marco e por intermédio de uma crise. A categoria funde tanto o plano econômico-estrutural como o especificamente político em um só. Trata-se de um ‘todo orgânico’ cujo âmbito temporal poderia ser situado dentro do de uma etapa ou ciclo histórico” (…) (Ciência e arte da política revolucionária)
Texto levemente editado do último informe do autor desta nota ao CC do Novo MAS.
A conjuntura argentina, segunda parte. Primeira parte: Argentina: o país do vértigo sem fim
A primeira definição que é preciso dar é que o “operativo Milei” está em terapia intensiva. Já não sabemos exatamente se este mentiroso e provocador profissional fracassou ou não; tampouco em que ponto a burguesia argentina –e a imperialista, que não devemos esquecer que está presente, com Trump e o FMI em cena– pretende que fique o pêndulo político na Argentina. Embora, como se pôde perceber após o discurso mentiroso de Milei, posando de “gatinho mimoso” que não é, bastou que baixasse um pouco os decibéis na forma para que a TN saísse a defendê-lo incondicionalmente. Feinmann e todos os seus acólitos, que defendem essa escória social nos meios de comunicação, se expressaram atacando nossos jovens companheiros e companheiras, como Baltasar Lapeña do Nacional Buenos Aires e Violeta de Filosofia e Letras. A Ya Basta! é hoje o principal agrupamento estudantil da esquerda na Argentina, e protagonista da ocupação das faculdades nestes dias.
1. O pêndulo político de um país em crise
O pêndulo político e social do país ficou em um ponto que não sabemos exatamente qual é, entre a guinada ultra-reacionária de agosto de 2023 e o 7 de setembro de 2025. Ficou em algum ponto intermediário, porque o país é desigual, porque as eleições são uma expressão distorcida da luta de classes, porque a votação de outubro não será mecanicamente igual à de setembro: há outras mediações e outros atores e, além disso, com o mero câmbio de gestos de Milei (no país, porque no Paraguai continuou o mesmo canalha de sempre!), os grandes meios saíram a defender e respaldar sua política de ajuste brutal.
O dado, em qualquer caso, é que o pêndulo político e social se moveu alguns graus para a esquerda em relação ao que vínhamos; esse dado duro da realidade nenhum jornalismo pago pode esconder!
Na realidade, não é apenas um resultado eleitoral frio, mas um resultado “quente”: não ao estilo de uma rebelião popular, mas sim com uma vontade eleitoral ativa que se expressou contra o ajuste. Passou-se de uma vontade ativa que em 2023 se expressou reacionariamente a favor do ajuste, a um consenso social majoritário ofensivo –ofensivo no terreno da consciência, não das ações– contra o ajuste fiscal.
Isso remete a algo mais profundo que já assinalamos em nossa última nota (“Argentina: o país do vértigo sem fim”, Izquierda Web): o vértigo político-eleitoral de um país em crise que não encontra equilíbrio, parte também de um mundo em crise e polarizado. Por isso não seria correto dar Milei já como morto: ele é um elo frágil de uma corrente mais forte, que é a extrema-direita mundial de Trump, Bolsonaro e companhia.
O país corre da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, e não consegue sair da armadilha de sua crise orgânica. Nosso Manifesto Anticapitalista para a Argentina (Izquierda Web), programa de nossa campanha eleitoral sem paralelo no resto da esquerda –para não falar da total ausência de programa do peronismo– explica essa situação de maneira profunda.
É preciso colocar em correspondência as definições que fizemos em 2023 com as de 2025, e pode ser que expressem que a burguesia está fracassando. A burguesia exerceu uma administração das relações de forças herdadas de 2001; teve a hipótese de derrotar essas relações de forças e até de questionar, em certa medida, as que vêm de 1983. Dois anos atrás, o regime operou para a direita de maneira feroz, enquanto o resto da esquerda se adaptava ao levantamento do fechamento eleitoral em agosto daquele ano. E agora, onde estamos?
Houve uma etapa de contenção a partir do Argentinazo, mas as etapas de contenção transcorrem sem acumulação capitalista; então veio uma tentativa reacionária de derrotar as relações de forças de 2001 para colocar o país em condições de acumulação capitalista. Acumulação capitalista versus relações de forças: as duas coisas juntas não funcionam. E como se encontra a quadratura desse círculo?
A crise de acumulação capitalista é feroz: a avenida Corrientes é uma avenida dos anos 60, não tem um único edifício novo, é uma decadência total –vivemos no passado. Nesse sentido, a Argentina se parece a Cuba: vivemos no século XIX e estamos no XXI.
Agora Jorge Liotti, editorialista de La Nación, intitula “Entre o ponto de inflexão e o ponto de não retorno”, o que pode ser traduzido assim: Hipótese A: Milei consegue reafirmar-se, o que continua sendo o plano de trabalho da burguesia, que saiu massivamente a apoiar seu hipócrita e cínico discurso da segunda-feira, 15/09 [1].
Hipótese B: fracassa, cai e vem outra coisa.Talvez com o resultado de outubro haja uma definição.
O vértigo eleitoral expressa um país em crise orgânica que oscila demais. Houve uma passagem muito forte do voto reacionário ao voto castigo. A sociedade encontrou aquelas coisas que não quer que sejam tocadas, que possuem uma tutela coletiva. O Estado, do ponto de vista econômico, é de papelão pintado e não garante nada; mas, do ponto de vista social e coletivo, acontecia que sim, havia coisas que tutelava, mesmo com a decadência do país. A sociedade identificou pontos que realmente lhe preocupam e que venceram o “egoísmo social”: questões que estavam na retaguarda passaram para a frente da sociedade, como a deficiência –centenas de milhares de famílias com crianças com deficiência que contavam com certa assistência social (e que o governo, em seu orçamento provocador para 2026, continua desfinanciando).
A universidade pública argentina é uma conquista, uma das poucas universidades de massas no mundo que é gratuita. Nesse sentido, o “atraso argentino” é positivo, porque a UBA tem 300 ou 400 mil estudantes, enquanto a Universidade de São Paulo, em um país de 220 milhões de habitantes, tem 60 mil.
A lei do desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky aplica-se plenamente à situação argentina, ainda que, em nosso caso, os elementos avançados estejam na estrutura social e cultural do país. Economicamente, é um país de retaguarda, embora conte com um campo moderno e uma classe operária de importância que não pode ser subestimada [2]. Na saúde também existem instituições de referência, como o Posadas ou o Garrahan, se compararmos, por exemplo, com os Estados Unidos, onde todo o sistema de saúde é privatizado.
São todas áreas não mercantilizadas, ou parcialmente mercantilizadas, que não estão submetidas à lei do valor, conquistas herdadas da segunda pós-guerra. Também existem na França, onde caiu o primeiro-ministro porque quiseram eliminar dois feriados no ano –Macron já recuou, mas ele pode recuar porque é de centro-direita, não é Milei, que não pode recuar. Por definição, as conquistas do Estado de bem-estar, do qual restam apenas fragmentos, significam áreas desmercantilizadas ou parcialmente mercantilizadas, porque, ao atenderem necessidades sociais, não se baseiam em critérios estritos de mercado ou da lógica do lucro capitalista. Assim como a linha de demarcação entre trabalho necessário e trabalho excedente, também a linha de demarcação entre o mercantilizado e o não mercantilizado expressa as relações de forças, sobre a base de condições materiais determinadas [3].
Na Argentina, a sociedade impôs a agenda à eleição de setembro; a praça impôs a agenda ao Congresso, e o Congresso impôs a agenda a Kicillof, que tampouco fez campanha com isso. Mas o povo não votou pela província nem votou em Kicillof, ainda que ele diga a ridícula mentira de que “se legitimou minha gestão”: que gestão, se o povo votou foi por deficiência, pelo Garrahan, pela educação, pelos aposentados! Por isso o governo ficou tão asfixiado, porque seu relato se tornou muito minoritário, ainda que no imediato tenha “saído do passo” com o discurso cínico e mentiroso da segunda-feira passada.
Milei está enfraquecido porque não conseguiu se consolidar, o que é raro, já que no mundo a extrema-direita sim se “estabiliza”. Bolsonaro pode ter condenação, mas tem uma força de massas; o trumpismo também, o mesmo vale para a Frente Nacional. Mas Milei, não. O que ele tem, por agora, é o apoio do regime, ainda que este lhe imponha limites neste momento. É impressionante como os editorialistas dos principais jornais escritos dizem uma coisa e sua reprodução nos canais de TV é muito mais descaradamente mileísta! São a guarda pretoriana dessa rata imunda, como se viu no maltrato de Feinmann contra Baltazar!
Uma segunda definição é que há duas importantes mediações. A primeira é que o governo ainda não cedeu; ao contrário, no fundo se reafirmou, e falta outubro para fazer uma avaliação de conjunto (a concentração educativa que está ocorrendo neste momento é enorme, mas sem transbordar). Milei ainda não está derrotado, apesar da derrota eleitoral.
A segunda mediação é o peronismo, porque ao governo foi muito mal e ao peronismo muito bem. Isso é diferente de 2001, quando a todos havia ido mal e houve uma rebelião contra o regime; agora é o Congresso quem “freia” Milei, a questão é “pró-regime”. É um fenômeno distinto, que marca um limite ao desborde anticapitalista; deixa muito no terreno do “progressismo” –não totalmente: existe um espaço para o anticapitalismo, ainda que seja muito difícil passar do progressismo ao anticapitalismo. E há uma terceira mediação, que são os governadores. Não houve muita especulação com Villarruel; a especulação para uma eventual Assembleia Legislativa é Schiaretti. Houve uma reunião dos governadores onde disseram “superávit fiscal e superávit social”; como se consegue realizar as duas coisas se o país não cresce há quinze anos? Ridículo.
Assim, o cenário é de uma crise global: econômica, social e política; mas, por enquanto, não há um cenário do tipo de 2001. O arbitragem é feito pelo regime político, sobretudo pelo Parlamento, com seu mecanismo de veto, contraveto e, no meio, a tentativa de negociar.
É preciso ver se, no imediato, a luta de classes intervém, mas é difícil: basta ouvir Kicillof repetir uma e mil vezes “as urnas” em seu discurso, para se ter uma ideia de como o peronismo se coloca. No entanto, é preciso ver o que acontece se ao governo for muito mal em outubro. Mas a eleição de outubro não será igual à de setembro: pode ser mais de terços desiguais, porque no interior do país o peronismo é fraco; em Córdoba vai ganhar Schiaretti.É provável que a LLA fique com 30%, o peronismo com 40% e a liga dos governadores com 20%. Mas a eleição de terços anterior foi com o ajuste legitimado, e esta será com o ajuste deslegitimado.
Então, temos um fator desestabilizador, que é o governo e suas ações provocadoras: ainda que mude as “formas” por algumas semanas, o conteúdo não muda porque são mentirosos profissionais! E dois fatores estabilizadores, que são o peronismo e os governadores. O governo está acabado? Opinamos que ainda não. É preciso levar em conta que Milei é um agente de Trump e do FMI, e Bolsonaro no imediato vai preso, mas isso não significa que o bolsonarismo não continue gozando de boa saúde. Trump é muito agressivo, mas não está indo bem: quis parar a guerra na Ucrânia, não conseguiu; quis disfarçar um pouco o que acontece com Netanyahu, também não conseguiu. Os Estados Unidos são um aprendiz de feiticeiro, atiraram no fascista Charlie Kirk. Ali há mais tradição de crimes políticos, mas não existe um só EUA, existem muitos, é um país com uma polarização terrível. A polarização é um dado categórico da realidade mundial.
2. A dialética entre o parlamento, as formas soviéticas e o partido
A questão é que, a caminho de outubro, vai haver campanha eleitoral, não se vê a iminência de um Argentinazo antes de outubro. Vem um processamento legislativo e eleitoral da crise argentina, com um diálogo com a praça (praça–palácio). O processamento não é apenas social, é também político. Há rua, luta de classes, mas a mediação parlamentar e eleitoral é enorme, e um cerco que nos dificulta avançar é que o partido não tem parlamentares. Há uma oportunidade de romper esse cerco em outubro, e essa é a questão: porque com a porcaria antidemocrática das PASO (das quais o FITU é o gendarme mais consequente!), em outubro nunca estivemos desde 2009. Agora essa oportunidade se abre! E, além disso, em meio a uma crise descomunal, como se percebe na forma em que estamos irrompendo nos meios com o Ya Basta!
Abriu-se um debate estratégico sobre o futuro do país: o que fazer com a Argentina? Começamos pela reivindicação do salário de dois milhões, mas vamos a um debate de fundo sobre o capitalismo. Uma localização totalmente distinta da do FITU. Perguntaram a Bregman qual é o problema da Argentina, e ela respondeu que é “o FMI”: é a mesma posição do peronismo, Cristina diz o mesmo (reduccionista, não anticapitalista, ainda que o Fundo seja obviamente um problema). Bregman diz “dois deputados a mais”, Cristina diz quatro, é a mesma lógica. E não, o problema da Argentina é o capitalismo como totalidade, que fracassou. E o primeiro problema popular é o salário; Kicillof não falou do salário nem da precarização laboral, porque isso significaria afetar a relação capital–trabalho.
Nós temos a campanha organizada. E esta crise vai de cabeça para outubro, porque outubro vai definir as proporções relativas de cada força na negociação burguesa sobre o que fazer com a Argentina. Os governadores propõem Schiaretti; o peronismo ainda não sabe se é Kicillof ou Cristina. A outra força é o governo, e a quarta é o movimento de massas.
A campanha é muito de aparato, mas temos uma oportunidade de renovar a esquerda na província de Buenos Aires com Manuela Castañeira (Del Caño já aborrece! Quando é que vai trabalhar?).[4] O problema do partido não é político, é organizativo, de administração de nossas forças e de nosso “aparato”. A renovação da esquerda tem que estar, precisamos perfurar no voto de esquerda. E também buscar votos da CC, radicais, do PS, que não têm candidaturas e podem simpatizar com a figura de Manuela, além, obviamente, de votos peronistas. Organizativamente a campanha nos fica grande, embora seja preciso buscar mil e uma formas de capilarizá-la; mas atenção, nunca pode ser descartado um “cisne vermelho” (a combinação de determinismo e “azar” é parte da dialética tanto na natureza quanto na sociedade).
O FITU acumula elementos crescentes de desgaste; dialogam com o clima da época, que é possibilista, mas se desgastam porque não satisfazem as expectativas. As expectativas não podem ser satisfeitas se não for revolucionariamente, mas o crescimento evolutivo de um deputado mais outro deputado desengana. A lógica profunda do FITU é social-democrata, porque não alerta nada e apenas pede mais deputados; não está mal em si mesmo pedir para ser eleito, o que está péssimo é nunca alertar simultaneamente que a resposta não pode estar no parlamento, mas sim na rua.
A lógica socialdemocrata se expressa em tudo. Se não se problematiza o fato de estarmos “atrapados” em um regime democrático burguês estabilizado, isso é um problema. E o FITU não problematiza nada. O PTS tem sua “hipótese estratégica” na ideia de um “Cordobazo do século XXI”, mas essa hipótese está desligada de sua prática cotidiana: tudo no aparato, esvaziamento militante pela base, militância excessivamente digital e não material, recusa total de voltar novamente aos locais de trabalho, viver como políticos profissionais da superestrutura, viver dos fundos das eleições e do aparato, e tudo assim. Trata-se de questões complexas que não podem ser resolvidas com um “gesto esquerdista” e que qualquer organização que tenha deputados precisa enfrentar. Mas o que parece ausente em sua reflexão é que todo aparato gera suas próprias necessidades, e isso é o que precisa ser problematizado. Já escutamos seu dirigente lançar alertas nos congressos do PTS, apenas para que, no instante seguinte, sigam pelo mesmo caminho de sutil adaptação em que vinham… Para que tanta reflexão sobre a estratégia se a verdadeira estratégia é puramente eleitoralista?
Nosso partido não tem essa lógica, e se conquistarmos deputados também não vamos adotar essa lógica (isso não significa que vamos fazer gestos “esquerdistas” ridículos), que na verdade é uma lógica “subjetivista”: meu umbigo é o “mundo”, não estamos atados a nenhum critério desde que beneficie nossa seita; parece-se muito a uma lógica stalinóide. Nós, que não somos objetivistas, tampouco somos subjetivistas: nos movemos com parâmetros e critérios objetivos.
Para um partido revolucionário, as coisas se integram com dois componentes: o objetivo e o subjetivo. O subjetivo é a construção do partido, os esforços permanentes, as gerações que se renovam; as condições revolucionárias não podemos nós mesmos gerar, elas têm que se dar, não se criam condições revolucionárias com “dois deputados a mais”… No entanto, é imprescindível ter deputados, representações, para dar um salto partidário: são um passo obrigatório rumo a um partido com maior influência!
Lênin afirmava que “o congresso é uma caverna de bandidos”. E efetivamente o é. E por isso estamos estrategicamente pela “construção soviética”: o poder dual. Mas os parlamentos também são uma caixa de ressonância da sociedade, distorcida, claro está, mas por ora não existe outro âmbito de representação que não seja essa caverna de bandidos. Distorcidamente, expressa as pressões sociais. E, no cenário argentino, é mais progressivo que o bonapartismo fracassado de Milei, que, recordemos, deu seu discurso inaugural de costas para o Congresso (um gesto bonapartista que só as relações de forças impediram que fosse mais longe) [5]. Falamos de um “mundo em combustão”, com um peso forte da extrema-direita. Ao parlamento é preciso superá-lo pela esquerda, não pela direita.
Nós temos a campanha organizada, temos a figura de Manu, temos o programa anticapitalista dos dois milhões de pesos, temos todo o perfil. A questão é que precisamos girar para a campanha eleitoral, e isso não é fácil. Não existe campanha eleitoral clandestina; há redes e de tudo, mas também é preciso agitar nos bairros e na rua (capilarizar a campanha).
Estamos acostumados a dar, e a não pedir; temos que aprender a pedir voto. O PTS é o contrário: é uma seita que pede e não dá nada. Nosso perfil é pouco “leninista”, é, erroneamente, mais de Marx, que não tinha uma ideia madura de partido: “os comunistas nos distinguimos somente porque levantamos os interesses gerais do proletariado”. Isso está bem, mas é insuficiente. Lênin, sem se dar conta totalmente, dava outra definição: a consciência “natural” da classe operária é consciência burguesa, não socialista, razão pela qual as organizações socialistas não surgem espontaneamente de sua própria luta e organização; então é necessário o partido, que vai contra essa “corrente natural”. O partido se constrói habitualmente a contracorrente, salvo nos momentos revolucionários. Não havia conceito de partido em Marx, era como Rosa, espontaneísta. Nós temos uma ideia demasiadamente “ingênua” de partido, demasiado comunista, e isso está bem, mas não estamos ainda no comunismo, nem sequer na transição: estamos no sangue e na lama cotidianos do capitalismo e da luta de tendências –que são uma sujeira stalinista–, e para chafurdar no sangue e na lama é preciso subir um pouco mais no pônei! Isso não sabemos fazer.
Por exemplo, algo elementar: temos que aprender a pedir o “maldito” voto. Outro dia Bregman foi falar de seu livro na Faculdade de Sociais, e como o livro não diz nada, ela não disse nada. Não falou da transição, nem do problema da mais-valia estatizada, nem das leis de ferro da guerra civil, nem da ciência e da arte da insurreição, nem de por que a arte vinculada ao ofício e à prática é um conceito importante no marxismo… Fez stand up com “os que não transamos no parlamento” (coisa a verificar, porque já transaram várias vezes!), eu, eu e eu, votem em mim. Parecia Kicillof com o negócio de “as urnas, as urnas”. Quando terminou, ninguém perguntou nada, aplausos, e foram embora da faculdade.
Nosso conceito de partido é demasiadamente comunista, e isso é um problema, porque o comunismo é uma etapa e a revolução é outra muito distinta. Temos indiscriminadas as leis da revolução, da transição e do comunismo, e as leis se aplicam com matizes; são momentos diversos da experiência da classe operária, e as acentuações também são distintas. No caminho para a revolução, no caminho do sangue e da lama, da dedada no olho e das manobras, a ênfase no partido é muito importante; há uma dialética entre partido e classe, mas, até certo ponto, o partido arrasta e não pode deixar de arrastar a classe junto à vanguarda. Essa mecânica não a temos bem dominada, porque nos dedicamos muito ao balanço do stalinismo, e isso está bem, mas as leis da revolução, da transição, do socialismo e do comunismo não se combinam exatamente da mesma maneira. Repetimos uma e mil vezes: as leis da revolução são as do sangue e da lama, e é preciso construir o partido, porque se não o construirmos nós, os e as revolucionárias, não o constrói ninguém! E para se construir, este partido tem que fazer mais autobombo, acreditar mais em si mesmo, fazer mais “marketing”! Inclinar a vara é uma das leis da dialética, porque não há posição neutra, tudo é um campo de tensões contrapostas (o filósofo tcheco Karel Kosic fazia observações agudas a respeito de que todo ponto de vista tem um elemento de “unilateralidade” porque é a acentuação de um aspecto).
Quem arrasta quem é muito importante, logicamente num diálogo entre a classe e o partido; em alguns momentos é a classe que arrasta o partido: na revolução, o partido, ainda que seja revolucionário, costuma ficar atrás dos desenvolvimentos das massas, que são cem vezes mais concretas que os militantes políticos. Mas em muitos outros, é o partido que arrasta a classe. Esse é o conceito de Lênin, e nós não o temos totalmente dominado; temos muito mais o de Marx, de autoemancipação. Temos o conceito de ajudar a classe e nos jogar pela classe, e é claro que isso é saudável; mas sejamos um pouquinho mais duros, porque nos custam mais as leis da revolução do que as da transição, e temos que compreender um pouco melhor as primeiras. Agora para as eleições, mais adiante será para a insurreição, quando vier.
3. Ciência e arte da política revolucionária
A de outubro, é uma eleição de meio termo ou é uma “assembleia constituinte” que termina numa assembleia legislativa? Dependerá dos desdobramentos destas semanas. Uma eleição de meio termo não se faz pensando em uma mudança de governo; uma assembleia legislativa é um instrumento burguês para trocar o governo. O que se está votando? Os membros da próxima assembleia legislativa para escolher um novo governo? O que se vota é se Milei continua ou não continua, e se, diante da possibilidade de que Milei não siga, falam de Schiaretti, é uma assembleia legislativa, porque o vice-presidente não é Schiaretti, é Villarruel.
Enfim, como dissemos, isso dependerá da dinâmica da crise. Em setembro, a ninguém importava quais cargos se votavam; agora, a reação daquela mulher que reconheceu no ônibus um de nossos candidatos e se lançou sobre ele: “Você é candidato, me diga em que posso ajudar!”, significa algo. Outubro é uma eleição muito particular, é uma eleição que pode substituir o presidente, e como se jogaram tanto em Milei, também substituiria o projeto; e bem, uma eleição que substitui o presidente e o projeto é uma assembleia constituinte, onde o jogo se abre mais, onde o programa tem muito mais peso.
Tem elementos de “constituinte” porque, se o governo não segue, formalmente é preciso sustentá-lo até 2027, ou buscar uma solução de emergência se não houver condições para chegar até lá. A Argentina não é a França, onde Sarkozy saiu pelos meios de comunicação dizendo que se escolha outro primeiro-ministro e pronto, que “não há antecedentes na V República de que um presidente caia”, que “Macron não pode cair, tem que terminar seu mandato”. Aqui a burguesia também não quer que caia o presidente, mas não tem a mesma convicção, porque sabem que é a Argentina, não podem apostar tudo em um único número, embora, no imediato, após o discurso presidencial, todo mundo tenha voltado a se alinhar na ideia de que é preciso sustentar Milei.
De todo modo, é uma eleição mais interessante, e justamente é a que também abre ao partido a oportunidade de um “cisne vermelho”. A campanha tem que ter outra capilaridade. O que isso quer dizer? Em primeiro lugar, que não é uma campanha apenas para a juventude. Mas também que é preciso destacar na linha de frente do partido gente que é mais “real” e que nos permite fazer uma campanha diferente. Por exemplo, os companheiros que queiram percorrer os bairros. É preciso conseguir carros velhos com uma corneta que percorram alguns bairros fazendo propaganda por Manuela Castañeira.
Além disso, o cartaz deveria ser “Manuela Castañeira ao Congresso”, porque nosso programa já é archiconhecido: há um jornalista falando do “índice MC”, o índice Manuela Castañeira como índice do salário mínimo. É preciso trabalhar para instalá-lo como uma estatística, aprender a fazer autobombo. E em todas as províncias, empurrar e agarrar-se à figura de Manu. Há elementos de objetivação de Manu; o salário é um deles, como em seu momento foi o direito ao aborto e agora pode ser o índice MC.
Capilarizar a campanha quer dizer ir além dos nossos limites. Como chegamos aos bairros profundos de La Matanza e a outros lugares? É preciso fazer campanha nos bairros. Podemos começar pelas estações, mas a campanha de verdade tem que ser feita nos bairros. É preciso organizar a campanha, temos que nos dedicar ao que mais nos custa, que é organizar; há coisas que se organizam por cima e outras por baixo, organizar a capilaridade, isto é, colocar em ação todo elemento que nos ligue a setores mais amplos, e alinhar todos os “patinhos” atrás. Todo elemento que nos leve aos bairros tem que ser explorado. O que é “retaguarda partidária”, passa à vanguarda. A questão é aproveitar todo elemento que nos leve ao movimento de massas.
Para aproveitar o possível “cisne vermelho”, é preciso seguir as leis de uma campanha eleitoral. Há coisas que vão continuar dependendo da política, porque não temos esse “duplo” aparato (o partido cotidiano e o “legal”). Mas é preciso se aproximar mais do que é uma campanha eleitoral e, com a política, fazer a diferença.
Não vamos ter especialização eleitoral se não tivermos votos. Toda organização gera necessidades próprias. Nossa organização, que necessidades gera? Fazer política, militar, construir pela base, luta de classes; não geramos mecanicamente espaços organizativos eleitorais porque não temos muitos votos nem representação; se os tivéssemos, isso se colocaria imediatamente de maneira concreta. Então, é preciso fechar essa brecha, e a ponte é a política e a “idealidade” avassalando a materialidade das coisas. Essa ponte tem elementos materiais e ideais, é inevitável.
Mas assim é tudo na política revolucionária. A tomada do poder é uma ciência e uma arte: o que isso quer dizer? O elemento científico, fundamental, é até onde você chega com a previsão; a criatividade, a arte, é da ordem da intuição, de transformar a realidade, onde a ideia se converte em materialidade. Pediram a Lênin garantias de que o poder “seria possível tomar”, e Lênin disse que não há garantias; é preciso se jogar na piscina –claro, fazendo previsões das relações de forças materiais. Mas há um elemento de imprevisão, porque nossa própria ação é parte da equação!
Trótski dizia que o planejamento é uma ciência e uma arte, porque o plano é uma previsão que, ao mesmo tempo, se corrige no próprio momento da aplicação. No nosso caso, será preciso lançar a campanha e ir corrigindo à medida que ela avança.
Há uma oportunidade porque o povo vai votar massivamente, porque a eleição está aí, na esquina, e pode haver uma assembleia legislativa que escolha um próximo presidente –salvo que Trump traga uma carretada de dinheiro; essas coisas podem acontecer porque existe a extrema-direita mundial. Se realmente houver uma assembleia legislativa, é o mais parecido, na Argentina, com uma assembleia constituinte. Quando Zamora falou na Assembleia Legislativa, o país inteiro o escutou; foi no final de 2001, a assembleia funcionou durante vários dias e elegeu vários presidentes.
Em suma, vamos a uma campanha distinta das que já fizemos, e precisamos nos dotar das ferramentas para levá-la adiante à altura das circunstâncias.
Notas:
[1] Isto não quer dizer que todos os setores patronais o apoiem: o setor da construção está aos gritos porque o governo, em seu novo orçamento para 2026, continua afundando a obra pública.
[2] Estas são conquistas que a burguesia vem atacando ao menos desde a ditadura militar, mas que são difíceis de roer.
[3] Saúde e educação ingressam, por definição, neste tipo de critérios, razão pela qual Milei as ataca. Outra questão são as condições gerais da acumulação capitalista, que são adiantamentos de investimento que numa primeira etapa não dão lucros, mas que contribuem para a produtividade geral da economia. Milei também não quer se responsabilizar por isso, por isso abandona as rodovias, por exemplo, e qualquer outro investimento estratégico do Estado.
[4] A vida de políticos profissionais da maioria das figuras do FITU é um elemento profundo de adaptação. A rotação não pode ser que um suceda o outro nos cargos, isso é uma deformação: a rotação é voltar a trabalhar!
[5] Parte do rotineirismo do FITU é levar tudo na brincadeira, como a expressão oportunista de Bregman de definir Milei como “gatinho mimoso”, que segue repetindo de maneira pedante. Adaptação é também lançar um “livro” que não é livro, mas puro marketing eleitoral (carece de qualquer ideia original).
Ilustração da capa: “Ecce Homo”. George Grosz.
Traduzido por Antonio Soler, do original Argentina: un país atrapado en una crisis orgánica.